Podcast Economistas: Trabalho em plataformas digitais e proteção social 

Segundo episódio da série organizada pela Comissão de Mercado de Trabalho do Economista e Valorização Profissional em comemoração ao Mês do Economista aborda os impactos do trabalho por meio de plataformas digitais sobre a proteção social 

Está no ar mais uma edição do podcast Economistas e nesta semana temos o segundo episódio da série organizada pela Comissão de Mercado de Trabalho e Valorização Profissional do Cofecon em comemoração ao mês do economista. O tema abordado é o trabalho por meio de plataformas digitais e quem conversou conosco foi o professor Marcelo Manzano, mestre em Economia Social e do Trabalho e doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O podcast pode ser acessado na sua plataforma favorita ou no player abaixo.

No ano de 2017 foi aprovada uma reforma trabalhista que trouxe modificações em relação ao trabalho temporário e terceirização, à duração da jornada, à possibilidade de trabalho intermitente, entre outras modificações. No debate, havia várias promessas envolvidas, sendo uma delas a geração de empregos formais, sob o argumento de que a flexibilização de regras permitiria que as empresas contratassem mais. Outra promessa era a modernização das relações de trabalho, incorporando modalidades como o teletrabalho. Também se falava em diminuir a judicialização. 

“Um primeiro aspecto da reforma é que ela permitiu que fossem formalizados vínculos que eram informais e muito precários – os chamados vínculos atípicos”, conta Manzano. “O caso mais evidente é o do trabalho intermitente. A pessoa é considerada um trabalhador formal, mas pode ter apenas um ou três dias de trabalho no mês, sem nenhuma segurança quanto à renda ou aos direitos previdenciários, porque não está contribuindo sequer com o necessário para receber um salário mínimo”. 

“Devemos lembrar que a reforma é produto de um momento da nossa história econômica e política, de forte avanço do neoliberalismo, e expressa a perspectiva neoliberal acerca das relações de trabalho”, pontua o professor. “Seu efeito foi muito ruim, transferindo para os trabalhadores riscos econômicos que usualmente esperamos que sejam tomados por capitalistas. A reforma tornou legal a transferência dos riscos, como a intermitência da economia, e ele terá que arcar com os custos ou com a falta de rendimento no caso de uma crise ou de mudança no dinamismo econômico”. 

Num país tão heterogêneo como o Brasil, pessoas diferentes são afetadas de maneiras diferentes pelas reformas. Mulheres, jovens, negros e trabalhadores informais são grupos que, mesmo representando a maioria da população, muitas vezes enfrentam barreiras adicionais para ter acesso a empregos de qualidade. Manzano vê uma redução na informalidade após as reformas, mas não uma melhora na qualidade de vida das pessoas. 

“Num mercado de trabalho tão desfavorável e heterogêneo, a discriminação é usada como instrumento de seleção. Quanto maiores as dificuldades percebidas no mercado de trabalho, maior é a discriminação”, observou o professor. “Nesse sentido, a reforma não contribuiu para a inclusão dessas pessoas, embora possa contribuir no aspecto da formalidade da contratação – então, há um efeito esperado na redução da informalidade, mas que não traz efetivamente uma melhora real nas condições de vida desses trabalhadores. E, dada a nossa estrutura social, nossa história e nosso legado escravocrata, este ônus acaba recaindo, em especial, sobre negros e mulheres de um modo geral”. 

Plataformas digitais 

Nos últimos anos o avanço das plataformas digitais tem transformado a forma como o trabalho se organiza em vários setores. O fenômeno tem sido chamado de uberização do trabalho e vai muito além do transporte de passageiros. Esta nova dinâmica traz consigo um duplo aspecto. Por um lado, pode ampliar o acesso a oportunidades de trabalho para grupos que historicamente são menos contratados para trabalhos com vínculos tradicionais. Por outro, impõe uma lógica marcada pela ausência de vínculos formais, direitos trabalhistas e garantias sociais, deslocando responsabilidades e custos para os próprios trabalhadores. 

“Esses processos de trabalho via plataformas digitais têm se estendido para outras ocupações, inclusive de maior exigência educacional, no mercado de profissionais de saúde, do setor financeiro, da área de comunicação e propaganda”, conta Manzano.  

O professor aponta para um efeito positivo: “É bom lembrar que, para determinados públicos que sofrem discriminação e preconceito nas formas tradicionais de acesso ao mercado de trabalho, as plataformas até podem representar certa democratização. A participação das mulheres no Uber é bastante mais expressiva que nos táxis. Mas este é um fenômeno específico”, comenta Manzano. “Mas as plataformas precarizam as condições gerais de trabalho, porque é regra o não reconhecimento dessa relação de trabalho, e infelizmente as instituições brasileiras não estão sabendo lidar com elas”. 

“As plataformas se colocam como intermediadores entre grupos econômicos independentes, como se fosse uma relação comercial e elas simplesmente fizessem esse casamento. Dessa forma, conseguem transformar trabalhadores em pessoas jurídicas ou microempreendedores, escamoteando que há uma efetiva relação de subordinação típica das relações de trabalho”, argumenta. “Assim, elas deixam de assumir responsabilidades, arcar com despesas fiscais e encargos trabalhistas que são importantes para manter nossa estrutura de proteção social, e acabam jogando o ônus desses custos para os próprios trabalhadores, que terão que arcar com sua segurança individualmente”. 

Ajuste da legislação 

A nova lógica de relações de trabalho trazida pelas plataformas digitais desafia não só os modelos tradicionais de produção, mas também as estruturas jurídicas e institucionais que sustentaram a proteção social ao longo de grande parte do Século XX. As grandes empresas de tecnologia, as chamadas big techs, possuem a capacidade de se modificar e se adaptar num curto espaço de tempo, o que permite responder rapidamente às demandas do mercado. A situação, entretanto, cria um desafio para quem deve regular e fiscalizar as relações de trabalho, proteger direitos e assegurar garantias mínimas para os trabalhadores. 

“É uma novidade na própria forma de organização das empresas capitalistas, diferente do padrão fordista, do padrão da segunda revolução industrial, com o qual estávamos acostumados”, explicou. “São empresas muito fluidas, se modificam num curto espaço de tempo, e têm um modo de agir diferente das empresas tradicionais. Para quem precisa pensar em políticas que organizam este mercado de trabalho e cuidar da regulação e do cumprimento das regras, fica mais difícil – mas isso não significa que não se deva tentar melhorar esse espaço de contratação”. 

“Isso vai obrigar a repensar os próprios mecanismos de garantia de direitos sociais e de direitos do trabalho. De um modo geral, fica menos possível exigir que as empresas ofereçam ou garantam o cumprimento dos direitos – férias, décimo-terceiro, descanso semanal remunerado, licença-maternidade, entre outros”, pontua Manzano. “Também fica difícil que nós consigamos dessas empresas o cumprimento das obrigações previdenciárias, porque muitos trabalhadores têm vínculos esporádicos, e uma pessoa pode trabalhar para três, quatro ou cinco plataformas no mesmo dia. Teremos que repensar quem responde pelo trabalhador, quem financia sua seguridade social e seus direitos”. 

Essa multiplicidade de vínculos exige mais do que simplesmente o ajuste de leis. Requer repensar o próprio modelo de financiamento da proteção social e da proteção trabalhista, até mesmo pela própria natureza intermitente desses trabalhos por meio de plataformas digitais. “Acho que se deverá caminhar por um modelo de constituição de um grande fundo público financiado por recursos cobrados diretamente junto a essas empresas e às big techs que fornecem infraestrutura digital para que este mundo funcione”, prevê o professor. “Precisaremos tributar essas empresas e cobrar um volume suficiente para garantir um fundo público que, em última instância, reverta aos trabalhadores, garantindo esses direitos sociais e trabalhistas, independentemente de quantos vínculos eles têm. Isso será inescapável em algum momento – não que devamos abandonar os antigos contratos de trabalho: para as empresas que demandam mão de obra na forma clássica, faz sentido manter o padrão de carteira assinada”. 

Mercado de trabalho 

O primeiro episódio da série sobre o mercado de trabalho tratou sobre a importância do economista. A matéria com o link para ouvi-lo pode ser acessada clicando AQUI.  

A série é organizada pela Comissão de Mercado de Trabalho do Economista e Valorização Profissional. Ela é coordenada pela conselheira federal Lucia dos Santos Garcia e tem como atribuições desenvolver programas e ações que promovam a inserção e valorização profissional dos economistas; realizar eventos, palestras e workshops sobre demandas do mercado, oferecendo ferramentas de aprimoramento profissional; propor políticas que valorizem a profissão; e representar os interesses dos economistas em fóruns, conselhos e discussões sobre mercado de trabalho; 

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