Valoração da Água na Agropecuária: desafios e oportunidades para o Brasil  

O papel do Brasil na gestão sustentável da água e na segurança alimentar global. Artigo de opinião por Elis Braga Licks e Carlos Eduardo Vian 

A água é um recurso natural essencial à vida e à produção de alimentos. Apesar de abundante em algumas regiões, trata-se de um recurso escasso e finito, cuja disponibilidade é desigualmente distribuída no planeta. Segundo ANA (2025), cerca de 97,5% da água existente no mundo é salgada e, dos 2,5% de água doce restantes, apenas uma fração está disponível em rios, lagos e aquíferos de fácil acesso. Estima-se que menos de 10 países concentrem cerca de 60% dos recursos hídricos disponíveis, e o Brasil, sozinho, detém aproximadamente 12% da água doce superficial do mundo (BANCO MUNDIAL, 2016), configurando uma importante vantagem comparativa em termos de segurança hídrica e produção agropecuária. 

Com o agravamento da escassez hídrica em diversas regiões do planeta, muitos países passaram a depender da importação de alimentos de nações com maior disponibilidade hídrica. Dessa forma, o comércio internacional de produtos agropecuários também pode ser interpretado como um comércio indireto de água, na forma de água virtual. 

O Brasil, ao exportar produtos agropecuários intensivos em uso de água, desempenha um papel estratégico no abastecimento mundial de alimentos. Entretanto, a abundância relativa do recurso não deve ser confundida com sua gratuidade. A necessidade da valoração da água, especialmente em contextos produtivos, emerge como instrumento fundamental para garantir seu uso racional, eficiente e sustentável. Diante disso, a importância da valoração da água utilizada na agropecuária, apresenta fundamentos teóricos, experiências práticas e destaca desafios e oportunidades para o contexto brasileiro. 

O contexto hídrico global e o papel do Brasil 

A escassez hídrica em diversas regiões do globo, especialmente no Oriente Médio, Norte da África e partes da Ásia, torna esses países altamente dependentes da importação de produtos agrícolas de regiões com maior disponibilidade de água (FAO, 2021). Esse comércio internacional implica, ainda que de forma implícita, a transferência de água embutida nos produtos, conceito conhecido como ‘água virtual’ (HOEKSTRA; HUNG, 2002). 

Nesse contexto, países com disponibilidade hídrica abundante, como o Brasil, exercem papel estratégico. O uso eficiente da água para a produção agropecuária torna-se, portanto, não apenas uma questão de sustentabilidade, mas também de competitividade econômica. Reconhecer e valorar economicamente esse recurso é fundamental para garantir sua alocação eficiente, inclusive frente aos desafios impostos pelas mudanças climáticas e pelo aumento da demanda global por alimentos. 

Entretanto, essa vantagem competitiva baseada na oferta abundante de água precisa ser gerida com responsabilidade e visão estratégica. No Brasil, cerca de 60% da água doce captada é destinada à produção agropecuária, especialmente para irrigação e dessedentação animal (ANA, 2024). A gestão ineficiente desse recurso, aliada à ausência de mecanismos adequados de valoração econômica, compromete não apenas a sustentabilidade ambiental, mas também a competitividade do setor no longo prazo. 

A valoração da água, entendida como a atribuição de um valor econômico ao seu uso, é uma ferramenta essencial para promover o uso racional e sustentável desse recurso, sobretudo em setores de alto consumo, como a agropecuária. Ao reconhecer a água como um insumo produtivo escasso e valioso, a valoração contribui para melhorar a alocação de recursos, orientar políticas públicas e fomentar práticas agrícolas mais eficientes e ambientalmente responsáveis. 

Fundamentos da valoração da água 

A valoração econômica da água consiste na atribuição de valor monetário aos seus múltiplos usos, levando em consideração sua escassez relativa, importância produtiva e relevância ecológica. Segundo Pearce e Turner (1990), a valoração de recursos naturais é fundamental para internalizar externalidades e orientar decisões eficientes do ponto de vista econômico e ambiental. No contexto brasileiro, autores como Seroa da Motta (1997) destacam a importância dos instrumentos econômicos como forma de promover o uso eficiente dos recursos hídricos, inclusive no setor agropecuário. 

A valoração pode ocorrer sob diversas abordagens metodológicas, como a estimação do custo de oportunidade, o valor de mercado da produção associada ao uso da água, métodos hedônicos, custo evitado e disposição a pagar (YOUNG, 2005). Além disso, pode estar vinculada a políticas públicas como a cobrança pelo uso da água, os pagamentos por serviços ambientais (PSA) e os mercados de direitos de uso. A abordagem escolhida depende do objetivo da valoração e das informações disponíveis. 

No caso da agropecuária, uma abordagem complementar e cada vez mais relevante é o uso da pegada hídrica — indicador que mede o volume total de água utilizada ao longo de toda a cadeia produtiva de um bem ou serviço. A pegada hídrica permite não apenas quantificar o uso direto e indireto da água, mas também identificar oportunidades de redução de consumo, comparar diferentes produtos ou sistemas produtivos e formular políticas públicas e certificações ambientais.  

A valoração da água, portanto, não se resume a precificá-la, mas sim a reconhecer seu valor em múltiplas dimensões — econômica, ecológica e social — e utilizar esse valor como base para decisões mais conscientes e sustentáveis. No setor agropecuário brasileiro, essa abordagem pode contribuir significativamente para promover uma produção mais eficiente, resiliente e ambientalmente responsável, especialmente diante das crescentes demandas internas e externas por alimentos e recursos naturais. 

Aplicações e experiências de valoração 

Em diversos países, a valoração da água tem sido utilizada como ferramenta de gestão. A Austrália é um exemplo emblemático de implementação de mercados de água, permitindo a negociação de direitos de uso entre usuários (OECD, 1999). Nos Estados Unidos, instrumentos de cobrança e PSA têm sido usados para promover práticas agrícolas sustentáveis e conservação hídrica. 

No Brasil, o Projeto Produtor de Água, coordenado pela ANA, oferece pagamentos a produtores rurais que adotam práticas de conservação de solo e água em suas propriedades (ANA, 2008). Tais iniciativas reforçam a ideia de que o valor da água não reside apenas em seu uso direto, mas também nos serviços ecossistêmicos que ela proporciona. 

A implementação de mecanismos de valoração da água na agropecuária tem avançado em diferentes contextos ao redor do mundo, com o objetivo de induzir o uso mais eficiente dos recursos hídricos, reduzir perdas e incentivar práticas agrícolas sustentáveis. Essas experiências revelam a importância de alinhar instrumentos econômicos, políticas públicas e ações locais para enfrentar os desafios da escassez hídrica e garantir a segurança alimentar. 

Desafios e oportunidades para o Brasil 

Apesar de sua posição privilegiada em termos de disponibilidade hídrica, o Brasil enfrenta desafios institucionais, técnicos e políticos para implementar de forma efetiva a valoração da água na agropecuária. Esses obstáculos dificultam a consolidação de um modelo de gestão que reconheça o valor econômico da água e estimule seu uso eficiente, especialmente em um setor altamente dependente desse recurso. 

Um dos principais entraves é a fragilidade dos mecanismos de governança hídrica, sobretudo no que diz respeito à regulação do uso da água em áreas rurais. Em muitas regiões, o monitoramento e o controle da captação de água para irrigação e dessedentação animal são limitados, o que compromete a eficácia da cobrança pelo uso da água e reduz o incentivo à eficiência. A informalidade no acesso à água — muitas vezes sem outorga — é uma realidade que dificulta a implementação de políticas de valoração. 

Apesar da existência da Política Nacional de Recursos Hídricos (BRASIL, 1997), a cobrança pelo uso da água na agropecuária ainda enfrenta desafios como a informalidade no uso, resistência política e limitações na governança hídrica. O fortalecimento dos comitês de bacia, o uso de tecnologias para medição e o incentivo à adoção de indicadores como a pegada hídrica podem contribuir para avanços nesse campo. 

Outro desafio importante é a resistência política e cultural à cobrança pelo uso da água no setor agropecuário. Parte significativa dos produtores rurais vê a água como um bem livre e ilimitado, e qualquer tentativa de precificação pode ser interpretada como uma penalização ao setor. A superação dessa resistência exige diálogo, informação e demonstração de que a valoração da água pode trazer benefícios econômicos, ambientais e sociais de longo prazo. 

Entretanto, esses desafios coexistem com grandes oportunidades. O contexto internacional cada vez mais valoriza produtos sustentáveis, e a valoração da água pode agregar valor aos produtos agropecuários brasileiros no mercado global. Certificações ambientais, exigências de rastreabilidade e preferências por cadeias produtivas com baixo impacto ambiental são tendências que favorecem países capazes de demonstrar eficiência no uso dos recursos naturais. 

Investimentos em pesquisa, tecnologia e extensão rural voltados à gestão hídrica são fundamentais para aproveitar essas oportunidades. A adoção de tecnologias de irrigação de precisão, o reuso da água na agroindústria e a restauração de áreas de preservação permanente são exemplos de ações que contribuem para a redução da demanda hídrica e, ao mesmo tempo, aumentam a resiliência dos sistemas produtivos. 

Portanto, ao transformar sua abundância hídrica em um diferencial competitivo baseado na sustentabilidade, o Brasil pode consolidar sua posição como um provedor global de alimentos com baixa pegada hídrica, conciliando crescimento econômico, conservação ambiental e responsabilidade social. 

Considerações finais 

A valoração da água é essencial para a gestão sustentável dos recursos hídricos no Brasil, especialmente em setores intensivos como a agropecuária. Incorporar o valor econômico da água nas decisões produtivas pode estimular práticas mais eficientes, reduzir desperdícios e fortalecer a competitividade internacional. Além disso, ao reconhecer a água como ativo estratégico, o país pode alinhar suas políticas públicas com os compromissos globais de segurança hídrica, alimentar e climática. Reconhecer e incorporar esse valor à formulação de políticas públicas, aos instrumentos econômicos e às práticas produtivas é um passo decisivo para garantir o futuro do campo brasileiro e sua contribuição ao bem-estar da população mundial. 


Elis Braga Licks – Economista, doutora em Economia Aplicada pela USP. Conselheira Federal de Economia (Cofecon), Coordenadora das Comissões de Sustentabilidade Econômica e Ambiental e de Responsabilidade Social e Economia solidária. Atua com políticas públicas voltada ao meio ambiente, desastres socioambientais e ensino superior. 

Carlos Eduardo de Freitas Vian – Doutor em Economia (Unicamp, 2002), Mestre em Engenharia de Produção (UFSCar, 1997) e graduado em Economia (Unicamp, 1989). Professor da ESALQ/USP, atua nas áreas de Economia Agrícola, Agroindustrial e Institucional. Coordena o GEPHAC e o GEEDES, com pesquisas em agroindústria canavieira, orgânicos, turismo rural e desenvolvimento socioeconômico. 

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