Impactos das alterações no IOF

 No podcast Economistas desta semana, o economista Guilherme Narciso de Lacerda aborda a utilidade de um imposto regulatório e ressalta a importância de a sociedade debater a tributação no Brasil 

No mês de maio o governo federal publicou um decreto com alterações nas alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). O tema se tornou objeto de uma disputa com o Congresso Nacional, que derrubou o decreto em junho. O assunto foi levado ao Supremo Tribunal Federal e o ministro Alexandre de Moraes determinou uma audiência de conciliação para o dia 15 de julho. 

Mas, para além da disputa política e jurídica, quais são as implicações da alteração das alíquotas de IOF e por que este debate causou tanta polêmica? No podcast Economistas desta semana, o economista Guilherme Narciso de Lacerda aborda a utilidade de um imposto regulatório e ressalta a importância de a sociedade debater a tributação no Brasil  

Ouça o podcast na sua plataforma favorita ou no player abaixo, e leia a seguir o artigo de sua autoria publicado originalmente na revista Fórum. 

O IOF é um imposto regulatório sim, mas faltou explicar à sociedade – Por Guilherme Narciso de Lacerda 

A narrativa de que a proposta era para elevar a carga tributária e, pior, atingindo a sociedade como um todo, é falsa 

O Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) é um imposto regulatório na sua essência e como tal tem sido tratado desde sempre, com adequações e calibragens de acordo com as avaliações do Ministério da Fazenda em cada governo. 

Um imposto regulatório tem também um resultado arrecadatório, por óbvio. Mas esta não é a sua função determinante, por isso ele não se submete ao critério da anterioridade, tal como os demais tributos. Essa distinção não é uma exclusividade nacional; está presente em todas as economias. 

A resistência do congresso em aceitar a medida se deu no âmbito de uma ambiência desfavorável a qualquer revisão que trate de impostos, além de ser fruto da desgastada relação institucional entre os dois poderes. Somou-se a isso uma postura inadequada da Fazenda ao apresentar a proposta, com uma ênfase exagerada na busca de recursos para se cumprir o compromisso estabelecido no arcabouço fiscal. 

A decisão legislativa de rejeitar o Decreto pegou o governo federal de surpresa e marca um novo momento da relação entre os dois poderes. O fato ganha relevância porque desde o governo Collor não ocorria tal expediente e porque há incertezas jurídicas sobre a legalidade de tal medida, com fortes indícios de uma usurpação de uma prerrogativa do Presidente da República. 

O anúncio de ajuste nos parâmetros do IOF levou a uma interpretação de que era mais um imposto que atingiria a todos, inclusive com confusões na população, entre os tributos dos três entes federativos. A máxima é a de que “se há reajuste de imposto, somos contra”. 

Essa postura reativa da sociedade foi sendo alimentada por vários canais vindos de vozes possantes do mercado financeiro, associadas aos mesmos analistas de plantão da mídia corporativa e com os agressivos grupos políticos de oposição ideológica ao governo do presidente Lula. 

Chegaram a dizer que o governo estava propondo uma “gambiarra” para arrecadar mais. O fato de se ter um incremento de receita não tira do IOF o seu fundamento de ser um instrumento para ser ajustado de acordo com a calibragem da política econômica, especialmente quanto a medidas creditícias e cambiais. Não foi a primeira nem será a última correção do IOF, dentro das possibilidades do gestor público. 

O episódio revela um erro flagrante na condução da proposta por parte do Executivo e outro por parte dos deputados e senadores pela falta de disposição em assimilar o que a proposta é, e sua importância para o aprimoramento tributário. 

A ênfase desatinada na arrecadação deu combustível para os ataques vindos de diversas frentes. Mais uma vez o encaminhamento conduzido pelo Ministério da Fazenda não se materializou como uma proposta de todo o governo. Tal medida, por sua relevância, deveria ter sido absorvida previamente por todo o time e não apenas por um “craque”. A falha não é só de comunicação, é de gestão. O tema não pode ser tratado exclusivamente pelo titular da Fazenda argumentando na 1ª pessoa, que “ele precisa para fechar as contas e atender ao arcabouço fiscal”. Com esta manifestação o critério constitucional da anterioridade na revisão tributária ganhou força e estimulou o legislativo a barrar, sabendo que a medida tem respaldo em núcleos econômicos fortes e agrada à sociedade. 

Os críticos da proposta se furtam a debate-la em termos do que ela contém em seus três eixos, ou seja, câmbio, seguros e empréstimos. Foi o típico “não vi e não gostei”. 

Os canais de debates acerca do mérito das proposições do Executivo estão truncados e, com isso, penaliza-se a qualidade das políticas públicas. 

Esta proposta de ajustes no IOF permite avançar um degrau na justiça tributária. A resistência a ela penaliza a qualidade da gestão tributária. Esta consequência é tão ruim ou pior do que a perda de arrecadação adicional de R$12 bilhões, montante previsto pelos gestores da Receita Federal. 

A narrativa de que a proposta era para elevar a carga tributária e, pior, atingindo a sociedade como um todo, é falsa. Não é isso que está no projeto que, infelizmente, foi sabotado do debate público. Daí a necessidade de mostrar o que a proposta contém. 

Com relação ao câmbio o Decreto unifica o IOF em 3,5% nas compras internacionais por cartão de crédito e remessas de recursos ao exterior. Nos cartões, o IOF incidia a uma alíquota de 6,38% até 2022, ou seja, quase o dobro; nas remessas de recursos ao exterior, o IOF de 1,1% está sendo harmonizado com as outras modalidades, aplicando a mesma alíquota dos cartões. As operações de crédito tomadas no exterior pagavam 6% até 2022. Em 2023 a alíquota foi zerada e agora se propõe 3,5% e restringindo o conceito de “curto prazo” a um ano. 

Diversas operações financeiras internacionais que já são isentas hoje, não foram inalteradas, como as transações de Importação e exportação, remessa de dividendos e juros sobre capital próprio para investidores estrangeiros, empréstimos e financiamento externo com prazo superior a um ano e operações interbancárias, dentre algumas outras como se pode verificar no decreto. Vê-se que estamos falando de regulação. 

Nas revisões para o crédito também fica flagrante o teor regulatório. Apenas as operações de crédito superiores a R$100 milhões (no período de um ano) das cooperativas é que passam a ter incidência do IOF. Abaixo daquele montante mantém-se a não tributação para as cooperativas, diferente dos financiamentos para empresas que hoje incluem o IOF, independentemente do valor. Também está sendo feita uma correta harmonização da incidência do IOF nas operações de financiamento e antecipação de pagamentos a fornecedores (o chamado “risco sacado”), tal como existe para as demais linhas de crédito. 

Há um ponto a reparar ainda com respeito a revisões do IOF para operações de crédito. Nos financiamentos para empresas, inclusive para as pequenas (MEI-Microempreendedor Individual) a proposta erra a mão. Ela majora as alíquotas praticamente dobrando o custo da captação, mesmo para empréstimos pequenos. Essa medida deveria ser revista pela Fazenda. O custo de financiamento já é proibitivo pelas elevadas taxas de juros reais e a proposta não contribui para a harmonização proposta. 

A respeito das proposições para incidência do IOF sobre seguros o decreto elimina uma brecha tributária que hoje favorece gestões de altas rendas. A inclusão do IOF de 5% se aplica apenas para os aportes mensais superiores a R$ 50 mil nos fundos VGBL (um investimento financeiro tido como plano de previdência privada). Continua sem IOF os aportes mensais abaixo deste valor. 

Estes apontamentos da proposta mostram o seu indiscutível caráter regulatório, e, sendo assim, ela está plenamente aderente às prerrogativas do Executivo em organizar a política econômica do país. 

É flagrante a dificuldade do governo federal em ajustar receitas e despesas para cumprir as obrigações definidas em lei. Convive-se hoje com um total de R$800 bilhões de subsídios fiscais, mais do que o dobro dos orçamentos da educação e da saúde. As tentativas de cortar desonerações são barradas. O legislativo federal não faz qualquer concessão que atinja seus interesses. O direito de se ter R$50 bilhões de emendas parlamentares passou a ser visto como uma cláusula pétrea. Os demais poderes (em verdade, passam de três) e os vários grupos corporativos da estrutura de gestão também não aceitam sentar na mesa para adequar seus ganhos. 

O debate em torno do imbróglio fiscal não pode ficar restrito a cortes nas políticas sociais, embora seja necessária uma revisão permanente dos programas para eles terem a eficácia projetada. É preciso abrir o leque e popularizar o debate em torno da destinação dos recursos públicos arrecadados e daqueles que deixam de entrar nos cofres públicos. 

A única alternativa para quebrar a resistência a um ajuste fiscal estrutural passa por uma aposta pesada na difusão para a sociedade dos diversos componentes das isenções fiscais e dos destinos finais das receitas federais. É preciso reconectar as ações do governo à sociedade. O impasse em torno do IOF pode ser a oportunidade para se ter um empenho forte de todo o governo federal em mostrar o mérito das propostas que arduamente ele tem tentado implementar. 


Artigo de opinião publicado originalmente na revista Fórum.

Guilherme Narciso de Lacerda é doutor em Economia pela Unicamp, mestre em Economia pelo IPE-USP, professor do Departamento de Economia da UFES. Foi presidente da Funcef (2003-20010) e diretor do BNDES (2012-2015). Autor do livro “Devagar é que não se vai longe – PPPs e Desenvolvimento Econômico”, publicado pela EditoraLetraCapital. É associado da Veredas Inteligência Estratégica. 

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