Queda do Índice de Miséria Ampliado indica bases mais sólidas para os mais pobres

Artigo de autoria de João Hallak Neto (conselheiro do Corecon-RJ e integrante do Conselho Editorial da Revista Economistas) e Marília Bassetti Marcato, publicado originalmente na Folha de S.Paulo (disponível para assinantes AQUI). Para saber mais sobre o índice de miséria, ouça o podcast Economistas #61 clicando AQUI.

Os indicadores econômicos do governo Lula 3 têm sido alvo de ceticismo por parte de críticos, que questionam se os números refletem de fato a realidade vivida pela população.

O próprio presidente já manifestou preocupação com essa aparente desconexão entre estatísticas favoráveis e percepção popular. Não à toa, esse dilema coloca o governo diante de um desafio: continuar administrando crises ou avançar uma agenda transformadora? A resposta envolve não apenas técnica econômica mas também política —e pode definir os rumos do país nos próximos anos.

Para entender esse cenário complexo, precisamos ir além dos indicadores tradicionais. O clássico Índice de Miséria (soma de inflação e desemprego), criado por Arthur Okun, tem uma limitação crucial: é simplista demais para capturar a realidade multidimensional da vida dos brasileiros.

Ao buscar um retrato mais abrangente da realidade, Saboia e Hallak Neto (2023) desenvolveram o Índice de Miséria Ampliado (IMA), que sintetiza quatro dimensões fundamentais: a inflação (medida pelo INPC), a subutilização da força de trabalho (que vai além do desemprego tradicional, incorporando os que trabalham menos horas do que o desejado e a força de trabalho potencial, desalentados ou não), a renda dos 20% mais pobres (RDPC), e o endividamento das famílias. O resultado é um retrato mais abrangente das condições de vida da população —especialmente para quem mais sofre com as crises.

A transformação das quatro variáveis em um indicador síntese é realizada de forma semelhante à feita no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU. O IMA varia entre zero e 100, sendo zero a melhor situação em relação ao bem-estar indicado pelas variáveis econômicas e 100 a pior.

A trajetória do IMA nos últimos 12 anos revela ciclos de avanços e retrocessos. Entre 2012 e 2014, o índice melhorou significativamente, atingindo seu menor nível (23 pontos), impulsionado por baixa subutilização da mão de obra (15,9%), baixa proporção de famílias inadimplentes (21,7%) —que atingiram os mínimos da série— e renda acima da média (R$ 308). Mas o biênio 2015-2016 interrompeu essa trajetória, iniciando um período de deterioração.

O pior momento veio em 2021, no auge da pandemia: com inflação de 10,2%, subutilização recorde (28,5%), renda em queda livre (R$ 224) e maior percentual de famílias endividadas (28,2%), o IMA atingiu 87 pontos —o nível mais alto da série. A decisão do governo Bolsonaro de não prorrogar o Auxílio Emergencial naquele contexto agravou ainda mais a situação.

A recuperação começou a tomar forma em 2022, com o retorno do auxílio (que passou para R$ 600) e o início da melhora no mercado de trabalho. O percentual de pessoas inadimplentes, porém, bateu recorde (32,3%).

Em 2023-24, o cenário continuou apresentando melhora: em 2023, a inflação recuou para 3,7% e, apesar da elevação para 4,8% em 2024, permaneceu controlada; a subutilização caiu para 16,2% em 2024 (próximo ao piso de 2014); a inadimplência também recuou (28,8% em 2024); a renda dos mais pobres atingiu R$ 382 em 2024 —o maior valor da série histórica em termos reais, ou seja, descontada a inflação.

Uma série de medidas estruturais tem contribuído para o comportamento favorável do IMA: o Bolsa Família fortalecido, o programa Desenrola, o reajuste real do salário mínimo, o programa Pé-de-Meia e o novo Crédito do Trabalhador. Em conjunto, são políticas que atuam nos quatro pilares do IMA.

Ainda assim, os desafios persistem. A inflação ainda preocupa, apesar de parecer perder força no segundo semestre de 2025 em meio a eventos climáticos e câmbio mais favoráveis, e o cenário internacional continua incerto. Mas os dados sugerem que, pela primeira vez em uma década, o país conseguiu não apenas sair da crise como reconstruir bases mais sólidas para os mais vulneráveis.

O desafio agora é fazer com que essa melhora se estabilize e traga confiança no futuro.

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