A Inteligência Artificial, mudanças do trabalho e os economistas
Artigo de opinião de autoria da conselheira federal Lucia Garcia*, publicado originalmente no
Jornal dos Economistas.
Há pelo menos 55 anos atravessamos um ciclo de grande de transformação da história produtiva e social, que resultou no capitalismo contemporâneo, uma amálgama constituída pelos objetivos da apropriação e comando financeiro dos meios produtivos, pela narrativa neoliberal e resultados da tecnologia norteada pelo digitalismo. Cada um destes pilares já contava com razoável desenvolvimento antes da década de 1970; porém, foi a síntese ali desenhada que moldou uma nova e complexa realidade para a vida produtiva e do trabalho, que vem se desdobrando em elevação da desigualdade e apreensões em relação ao futuro¹.
Embora tenha sido originada muito antes da fusão destes fatores, os últimos verões da Inteligência Artificial (IA) ocorreram nos marcos deste capitalismo contemporâneo, que lhe marca indelevelmente. Dessa forma, compreende-se que o debate agora protagonizado por esta tecnologia carrega a sombra
do desemprego e da precarização. No centro disto, preponderam incertezas quanto ao impacto da ferramenta sobre os requisitos futuros e processos de padronização do conhecimento humano e sua eventual substituição, traços inquietantes que são potencializados pela tendência de reposicionamento
da IA como Tecnologia de Uso Geral (TUG).
Nesta discussão, também é importante destacar o papel desempenhado pelo atual estágio da IA no deslocamento das percepções sociais do digitalismo. Afinal, a IA já está disseminada entre nós há anos, presente em equipamentos, ferramentas e aplicações variadas, como celulares, jogos eletrônicos, chatbots, assistentes virtuais e internet banking, que se popularizaram por meio de técnicas de Processamento de Linguagem Natural (PLN). Mas este cenário se transformou com a massificação do uso do ChatGPT (OpenAI 3.5), impulsionado por aspectos comportamentais e pela expansão da IA generativa baseada em Grandes Modelos de Linguagem (LLMs), desdobramento sofisticado de PNL, que tornou possível a produção de textos, imagens, sons e vozes a partir da associação de dados e informações contextuais, por meio de redes neurais profundas. Não seria um exagero lembrar que, até recentemente, a presença de máquinas inteligentes era majoritariamente percebida como fonte de conforto e facilidades para o cotidiano, enquanto seus efeitos deletérios eram identificados para círculos
restritos. No imaginário coletivo, essas desvantagens estiveram, por um bom tempo, circunscritas às críticas retóricas sobre a extração geral de dados e exploração de trabalhadores da base ocupacional sem direitos — trabalhadores de aplicativos; do comércio, serviços e construção civil incorporados ao contingente das plataformas digitais². Um impacto ainda mais abrangente e profundo dessas transformações sobre a sociedade, portanto, dependeria de uma penetração mais intensa da nova base
técnica no mundo produtivo e do trabalho, que ultrapassasse as inovações das transações do setor terciário, já então absorvidas.
Em parte, este avanço já vinha ocorrendo nas linhas de produção, por meio da automação robótica e de inovações infraestruturais, muitas vezes imperceptíveis para a maior parte da população e operadas em linguagens formais — típicas da área computacional. Contudo, uma inflexão de fato ocorreu com o desenvolvimento de aplicações especializadas para o apoio de tarefas cotidianas, realizadas por profissionais da saúde, educação, comunicação e marketing, arquitetura, engenharia, além de análises jurídicas, econômicas e contábeis. Disseminada para ocupações de maior conteúdo cognitivo, de fato, a IA parece ter mudado o foco das implicações do digital sobre o mercado de trabalho. Entre os mais afetados, neste momento, estão os trabalhadores qualificados da produção de bens e serviços, com destaque para profissionais da programação, além de categorias tradicionais de formação superior, como os bacharéis, incluindo os economistas.
Esta poderia ser uma atualização das preocupações que vêm acompanhando trabalhadores em diferentes transições tecnológicas. O diferencial da atualidade, contudo, está relacionado ao perfil dos postos de trabalho afetados, ao viés do conteúdo intrínseco a esta tecnologia e à velocidade da expansão da IA generativa — diretamente conectada à natureza das soluções que ela produz, como a automação de processos e a geração de textos e scripts coesos, coerentes e bem elaborados. Sob uma perspectiva sistêmica sobre o futuro, entretanto, o impacto da IA generativa dependerá da estratégia adotada no desenvolvimento e aplicação dessa técnica, sobretudo, em sua eventual capacidade de substituir a cognição humana. E, em nosso caso específico, a possibilidade de substituir a reflexão crítica dos economistas.
A resposta para essa questão ainda está em aberto, ou mesmo em disputa, não apenas no campo da computação, mas também nas áreas da linguística, filosofia, ciência política, epistemologia e, naturalmente, nas discussões sobre o que compreendemos como conhecimento e como exercício profissional no campo da Economia. Em síntese, é inegável que a mudança técnica em curso já está impactando a forma como produzimos e aplicamos saberes. A questão central, no entanto, reside no reconhecimento dos limites e alcances reais desses efeitos.
Na literatura, as respostas para essa questão estão relacionadas às diferentes interpretações sobre a origem e o desenvolvimento da inteligência artificial (IA), sistematizadas em duas hipóteses principais:
a da computação necessária, que atrela o futuro da IA aos avanços da computação digital, e a da computação contingente, que considera a possibilidade de associações com outras bases tecnológicas (analógicas, biológicas, hidráulicas, entre outras). No primeiro caso, a IA dependeria estruturalmente da computação digital, partindo do pressuposto de que a simulação de processos cognitivos exige capacidades robustas de processamento, armazenamento e execução lógica. Nessa perspectiva, as linguagens formais (comuns entre programadores) e os algoritmos são compreendidos como fundamentos intrínsecos ao seu desenvolvimento. Já a segunda abordagem, ao reivindicar as origens analógicas e cibernéticas da IA, propõe uma compreensão mais ampla e menos centrada na base técnica digital. Nela, a geração artificial do conhecimento é vista como um processo semântico, não tecnicista, associado a sistemas de controle, comunicação, autorregulação e capacidade adaptativa. Esta visão fornece diretrizes para a articulação entre diferentes campos científicos, capazes de romper fronteiras disciplinares relevantes da atualidade. As duas abordagens não são necessariamente excludentes e podem convergir em um futuro marcado por maior hibridismo entre humanidade e máquina; porém, na atualidade apresentam pouca integração, indicando uma razoável permanência da IA nos domínios algorítmicos e saberes instrumentais.
Em busca de avaliações concretas dos efeitos da IA generativa sobre o mercado de trabalho geral, Thiago Meireles³ vem destacando as dificuldades para esta mensuração. Entre seus apontamentos figura a desafiante interpretação do papel exercido pelas organizações, Estado e contexto socioeconômico no ritmo e dispersão das transformações
tecnológicas. O autor também aponta a carência de metodologias e de bases de dados locais dedicadas aos processos de trabalho, que descrevam, efetivamente, requisitos cognitivos, formas de organização e tecnologias utilizadas pelos trabalhadores na execução de tarefas. Com estes dados, nos moldes gerados pela estadunidense O*NET⁴ , poderíamos criar taxonomias ocupacionais e identificar habilidades sob risco de automação, recurso inexistente no Brasil. A partir dos dados corriqueiramente divulgados sobre a nossa realidade, contudo, os dilemas urgentes relacionados à escolarização e baixa complexidade produtiva do país parecem anteceder, notavelmente, a presença da IA, cujo impacto, por isto, tende a ser setorizado. De fato, mesmo dentre o limitado contingente de ocupados com ensino superior (24,7% no primeiro trimestre de 2025)⁵, uma parcela significativa destes trabalhadores é absorvida em inserções incompatíveis com sua escolaridade⁶.
Uma avaliação, ainda que ensaística, dos efeitos da IA sobre a atividade dos economistas remete a uma reflexão mais ampla sobre a utilidade social do saber econômico, seu caráter científico, suas formas de aplicação e seus campos de atuação. Embora historicamente debatidas, estas questões reaparecem com ênfases variáveis segundo a conjuntura, geralmente em círculos restritos e frequentemente vinculadas a aspectos formais, institucionais ou regulamentares⁷. Neste cenário de mudança tecnológica, contudo, essas discussões devem ultrapassar a mera atualização para refletir mudanças efetivas da prática profissional, que irão se desdobrar em novos requisitos, competências ou habilidades exigidas dos economistas. No cotidiano, isto será refletido na automatização de tarefas, ampliação de possibilidades analíticas com domínio de dados e modelagens, ao lado de exigência de maior interpretação crítica e capacidade metodológica. Estas adaptações, todavia, mesmo que profundas, se darão sem renúncias ao sentido essencial do conhecimento econômico e seu compromisso com a análise substantiva das relações de produção e reprodução social.
Embora poderosa e distante da neutralidade, a caracterização da IA como ferramenta indica que seu alcance está profundamente condicionado pelo contexto socioinstitucional em que é implementada, o
qual é fortemente influenciado pela atuação dos próprios economistas. Compreendida nestes limites e como um produto social, mesmo incidindo nos modos de trabalho, a IA não ameaçará a formulação do
conhecimento econômico. Portanto, aos economistas, caberá o desafio contemporâneo de agregar valor humano a um cenário marcado por crescente poder computacional.
*É mestra em Economia/UFRS, técnica do Dieese, especialista em mercado de trabalho
e Conselheira Federal de Economia.
1 DOS SANTOS GARCIA, Lucia. Forja
e resultado: capitalismo dataficado. In: GRUPO DE PESQUISA EM CONTEXTOS
DIGITAIS E DESENVOLVIMENTO HUMANO (Org.). Contextos digitais: encontros,
pesquisas e práticas. Porto Alegre: UFRGS, 2022. p. 57
2 Vide Revista Ciências do Trabalho/DIEESE n.º 21 e n.º 22 (https://rct.dieese.org.br/
index.php/rct/ )
3 MEIRELES, Thiago de Oliveira. Inteligência Artificial: impactos sobre o mercado de
trabalho e a desigualdade de renda. 2022. Tese de Doutorado. Universidade de São
Paulo.
4 O*NET (Occupational Information Network) é um banco de dados ocupacional
mantido pelo Departamento de Trabalho dos Estados Unidos. Desenvolvido pelo U.S.
Department of Labor/Employment and Training Administration (USDOL/ETA), que
fornece informações detalhadas e atualizadas sobre um conjunto vasto de ocupações.
5 PNADC/IBGE
6 DIEESE, 2023. Aumenta ocupação de pessoas com ensino superior, mas
em trabalhos não típicos para essa escolaridade. Emprego em Pauta, nº 26.
novembro SP. DIEESE (https://www.dieese.org.br/boletimempregoempauta/2023/
boletimEmpregoemPauta26.html)
7 COATS, A. W. Bob. Economics as a Profession. In: COATS, A. W. Bob (org.). The
Sociology and Professionalization of Economics: British and American Economic
Essays. Volume II. London: Routledge/Taylor & Francis, 1993. Cap. 21