Desenvolvimento brasileiro e a (des)globalização
Artigo de opinião do conselheiro federal Econ. Antonio Corrêa de Lacerda*, publicado originalmente no Jornal dos Economistas
A financeirização que se intensificou, pós anos 1990 e as sucessivas crises têm evidenciado o papel do Estado e das políticas públicas, especialmente para os países em desenvolvimento. O cenário pós pandemia Covid 19 e os desdobramentos da Guerra Russi-Ucrania, assim como os impactos da crise climática, têm provocado um reposicionamento dos países frente às cadeias internacionais de suprimentos e a relocalização de projetos de investimentos.
Mais recentemente as políticas protecionistas implementadas pelo governo Trump nos EUA implicam mudanças de posicionamento dos países. Daí a importância não apenas do fortalecimento da questão regulatória, que vem evoluindo internacionalmente, mas também das medidas domésticas de criação de alternativas. As transformações em curso têm provocado uma (des)globalização em curso, em contraponto ao paradigma da globalização neoliberal vigente desde o final dos Século XX.
Um dos fatos marcantes da nova fase das políticas públicas brasileiras, no Governo Lula III, é o lançamento e implementação de programas como o Plano Nova Industria Brasil (NIB) e o Programa de Aceleração do Crescimento (NovoPAC). Lançado oficialmente no início de 2024 e a implementação em curso, a nova política industrial, o Plano Nova Indústria Brasil (NIB), coloca de volta à agenda a necessidade de reversão da desindustrialização em curso e as bases para a neoindustrialização. Consequentemente abre a perspectiva das estratégias para recolocar o País no jogo da reorganização global das cadeias internacionais de suprimentos. Trata-se de importante iniciativa para promover a transformação para uma economia sustentável ambiental e socialmente, inclusiva, digital e inovadora.
Alguns aspectos do NIB devem ser ressaltados. O primeiro é a sua abordagem inovadora e construção, baseada em missões. O Conselho de Desenvolvimento Industrial (CNDI), reativado em 2023, reúne cerca de vinte ministérios e o equivalente de entidades representativas da indústria e dos trabalhadores. Nele foram definidas seis missões norteadoras das políticas ora divulgadas, todas elas em linha com o Novo PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) e do Plano de Transformação Ecológica (PTE), que são importantes projetos estruturantes e interligados entre si.
A NIB reflete as discussões realizadas desde o início da elaboração, se tratando, portanto, não de um plano fechado, de gabinete, mas incorporando o resultado das visões dos agentes envolvidos, Governo, iniciativa privada entidades representativas da sociedade e academia, o que lhe dá legitimidade e comprometimento, quanto aos objetivos, metas e ações necessárias.
É nesse contexto que o Ministério da Industria e Comércio Exterior (MDIC) recriou o Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI), basicamente formado pelos principais ministérios envolvidos na temática e também entidades representativas dos empresários. No âmbito das modernas políticas industriais em prática mundo afora, foram definidas as missões que nortearão as políticas a serem implementadas. Seis missões relevantes foram apresentadas:
- Cadeias agroindustriais sustentáveis e digitais para a segurança alimentar, nutricional e energética;
- Complexo econômico industrial da saúde resiliente para reduzir as vulnerabilidades do SUS e ampliar o acesso a saúde no país;
- Infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis para a integração produtiva e o bem-estar nas cidades;
- Transformação digital da indústria para ampliar a produtividade;
- Bioeconomia, descarbonização, e transição e segurança energéticas para garantir os recursos para as futuras gerações;
- Tecnologias de interesse para a soberania e a defesa nacionais.
(CNDI, 2024)
Como já destacado, o cenário global pós-Covid-19, dos efeitos da crise climática e as guerras Rússia-Ucrânia e Israel-Hamas representa uma revisão dos preceitos da globalização pós anos 1990 e até’ então em curso. Após a vigência da visão liberal focada na redução de custos via internacionalização da produção, está em curso, no final da segunda década e início da terceira do século XXI, um novo conceito de localização das plantas produtivas, levando em conta os aspectos logísticos e de segurança de fornecimento. Fatores como a revisão da localização da produção e da proximidade dos fornecedores (reshoring e nearshoring) e as questões geopolíticas (friendshoring), visam a minimizar os riscos de descontinuidade do processo produtivo, como o ocorrido recentemente com os insumos fármaco-quimicos (IFAs) e Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), na Covid-19 e, mais recentemente, com os semicondutores (chips), por exemplo.
O novo paradigma da divisão internacional do trabalho, que alguns definem como de desglobalização ou reglobalização substitui a visão liberal da visão do suprimento pelo menor custo, pela segurança de fornecimento. É nesse sentido que está em curso uma alteração significativa da localização das cadeias internacionais de suprimentos.
No quadro doméstico, a crise no setor industrial é estrutural e persiste há anos. Vários fatores estruturais têm impactado negativamente a indústria brasileira, que vive os efeitos da desindustrialização precoce. Crédito caro e escasso, política cambial instável por longo período e o desequilíbrio dos fatores de competitividade sistêmica, o “custo Brasil”, se encarregaram de agravar o aprofundamento da crise. Condições macroeconômicas desfavoráveis e políticas industriais ausentes ou pouco efetivas tampouco contribuíram para reverter a situação adversa. Os industriais brasileiros, aqueles que não atuaram em setores diretamente ligados a commodities, ou de setores oligopolizados, foram “empurrados”, por sobrevivência, ou senso de oportunidade, para a importação e o rentismo.
Como consequência houve ao longo dos três últimos decênios o avanço das importações, especialmente advindas da China, substituindo a produção local. As exportações de industrializados perderam espaço, ou estagnaram e um mercado internacional hipercompetitivo. A balança comercial brasileira seguiu apresentando resultado superavitário, fortemente influenciado pelo excelente desempenho exportador dos complexos agro, mineral, petrolífero e de carnes. Mas a questão fundamental que se apresenta não se trata de deixar de produzir e exportar os produtos mencionados, mas incrementar os de maior complexidade e valor agregado.
Nesse quesito, o Brasil, dada a sua potencialidade, é um dos poucos países do mundo que potencialmente pode manter e ampliar sua pauta de produção e exportação nos setores em que já mantem posição de destaque no mercado internacional, sem, no entanto, fazer isso em detrimento da indústria e serviços sofisticados.
A desindustrialização precoce da economia brasileira vivenciada nas últimas décadas representa um claro fator limitador do desenvolvimento. Ao contrário de países ricos, o Brasil perdeu participação da indústria de transformação no Produto Interno Bruto (PIB), sem que ela tivesse contribuído para a ampliação da renda per capita do País. Portanto, reindustrializar a economia brasileira se torna imprescindível para a retomada do desenvolvimento.
É viável reverter a desindustrialização em curso no Brasil e promover uma reindustrialização. No entanto, isso não significa que se trata de tarefa fácil, tampouco será algo que ocorrerá automaticamente, ou de forma natural. Trata-se de um processo induzido, mediante a criação de um ambiente macroeconômico mais favorável à produção, a adoção de políticas de competitividade (ou seja, políticas industrial, comercial e de inovação), além do fomento à inovação e cultura empresarial, incluindo a interação e intercâmbio universidade-institutos de pesquisa e empresas.
Vale destacar que as três esferas citadas: macro, meso e micro são complementares e interdependentes entre si. A falsa ideia da “compensação”, no sentido de uma esfera vir a cobrir deficiências das demais, não funciona. Mesmo porque, é impossível balancear a competitividade, ainda mais em uma economia global hipercompetitiva, com base em apenas em uma das vertentes.
O financiamento é fundamental para impulsionar os investimentos de forma a sustentar o crescimento econômico de longo prazo. É neste ponto salutar observar que mercado privado e fundos públicos tem apresentado expansão de forma complementar. Os bancos públicos, especialmente o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) tem cumprido importante papel neste sentido, tanto no financiamento e participação na forma de Private Equity, quanto na estruturação de Parcerias Público Privadas (PPPs) e concessões públicas ao setor privado.
No mercado financeiro privado as empresas captaram R$ 541 bi entre janeiro e setembro de 2024, maior volume da série iniciada em 2012 e 15,9% superior ao período homólogo de 2023. As emissões de debentures chegaram a R$ 325,6 bilhões, especialmente em infraestrutura e gestão ordinária. A distribuição por setores aponta para energia elétrica com 23,5%, transporte e logística, 16,5% e saneamento, 8,6%.
Essa expansão ocorreu concomitantemente ao retorno do BNDES como fomentador da infraestrutura, indústria e serviços, retomando sua função precípua de banco de desenvolvimento. Mais uma evidência de que o financiamento público não compete, pelo contrário, incentiva o desenvolvimento do mercado de capitais.
Em 2024 as aprovações de crédito do BNDES atingiram R$ 212,6 bilhões, o que representou um incremento de 22% comparativamente a 2023 e de 61% a 2022. A inadimplência é próxima de zero, dados os rígidos padrões de exigências de garantias seguidos nas operações.
A combinação entre financiamento público e mercado privado tem sido e continuará sendo fundamental para os aportes em infraestrutura, indústria, comércio e serviços e no fomento à transição energética, demandas das crises climáticas, digitalização e inclusão social, assim como para o desenvolvimento brasileiro.
*Economista, professor-doutor do Programa de Pós-graduação em Economia Política da PUCSP, ex-presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon). É assessor da presidência e membro da Comissão de Estudos Estratégicos do BNDES. O artigo não reflete, necessariamente, a visão das entidades a que o autor está vinculado.