Tributar ricos e controlar preços estratégicos para destravar economia, por Fernando de Aquino

Artigo de opinião por Fernando de Aquino*

Crescimento sustentável, inclusivo e produtividade depende de maior participação da tributação dos mais ricos no financiamento do Estado

Neste terceiro mandato, já não contando com recursos externos abundantes e agora mais empenhado em transformações estruturais mais pronunciadas, que elevem a nossa produtividade de modo sustentável, com base no fortalecimento de políticas industrial e de ciência, tecnologia e inovação, o governo precisa reformular seu regime de política macroeconômica – fiscal, monetária e cambial. A fiscal vem sendo controlada pelo atual governo desde o seu início, tendo como marco o chamado Novo Arcabouço Fiscal. Em comparação ao marco anterior, é possível identificar avanços e ainda grandes deficiências.

O Teto de Gastos era, antes de tudo, um mecanismo de aniquilamento do nosso ainda modesto Estado de bem-estar social, ao congelar o valor real do dispêndio público em níveis já insatisfatórios e para uma população crescendo, mesmo diante de um PIB, sua fonte de financiamento, se expandindo. O Novo Arcabouço Fiscal continua exigindo restrições que seriam desnecessárias e podem comprometer avanços e até a manutenção desse Estado de bem-estar social, bem como a promoção do crescimento econômico, como com investimentos em infraestrutura.

Contudo, a grande melhoria trazida por esse novo referencial foi limitar os gastos de acordo com a arrecadação, o que possibilita elevações reais e ainda estimula o aumento da própria arrecadação, uma fonte de financiamento que pode favorecer a desconcentração de renda e riqueza. Como alternativa, o endividamento corresponde à devolução futura do recurso acrescido de juros, o que contribui para aumentar a concentração. Embora se insista que a carga tributária no país é demasiada, as avaliações desagregadas mostram que sua incidência é muito reduzida para os indivíduos mais ricos.

Assim, o aumento da tributação sobre esses indivíduos representaria uma transferência de recursos para políticas públicas, em benefício de todos, desde que se evite desperdícios, desvios e favorecimentos, em que formas emblemáticas são as remunerações exorbitantes de algumas castas do serviço público e emendas parlamentares com despesas sem benefícios econômicos ou sociais minimamente aceitáveis. Do ponto de vista de potencial arrecadatório, os estudos destacam o cancelamento da desoneração da folha de pagamento, o retorno do Imposto de Renda sobre lucros e dividendos distribuídos e a cobrança de valores razoáveis de Imposto Territorial Rural (ITR). A implantação dessas e de outras formas de tributação sobre os mais ricos depende de aprovação legislativa, o que tem gerado uma resistência até agora invencível.

De todo modo, seja limitando gastos públicos ou resultados fiscais, a prioridade alardeada pelo setor financeiro é a redução urgente da dívida pública. Não se pode negar que o seu crescimento explosivo poderia levar a um comportamento de bolha, descolando-se demasiadamente da riqueza real, com grande risco de um estouro, representado pela fuga para outros ativos, tanto reais quanto externos, e elevações ainda mais acentuadas nas taxas de juros. Como resultado final, além das perdas de emprego e patrimônio, teríamos um período de estagnação com descontrole inflacionário e instabilidade política. Uma moratória também poderia ocorrer, na tentativa de atenuar cenários mais críticos.

Entretanto, na atual conjuntura, não se identificam riscos de moratória ou de estouro de bolha de endividamento público. (Não há qualquer fundamento, objetivo e empírico, em se identificar os níveis de endividamento correntemente observados nos países emergentes como o limite para qualquer um deles. O máximo que pode ser feito é monitorar indícios, como a escalada dos fluxos líquidos de saída de moeda estrangeira ou dos preços dos imóveis). Portanto, cortes de gastos públicos não seriam uma pauta tão urgente, havendo espaço para metas de estabilização ou até diminuição no endividamento em períodos futuros, sem penalizar serviços e investimentos públicos e gastos sociais.

Mesmo assim, as reações do mercado financeiro a aumentos corriqueiros de despesas ou déficits fiscais primários, gerando depreciações da taxa de câmbio, elevações das taxas de juros e aumentos das expectativas de inflação, comprometem o controle da inflação e os investimentos no setor real correntes. Esta tem sido a dificuldade de o governo utilizar o endividamento como fonte de financiamento de seus gastos. O Banco Central permite que os agentes do mercado financeiro formem livremente esses preços estratégicos, que afetam decisivamente a inflação e o crescimento.

Quanto às demais pernas da política macroeconômica, a monetária e a cambial, não se pode fazer qualquer crítica ao atual governo, pois ainda estão sob responsabilidade de um Banco Central com presidência e maioria da diretoria formada pelo governo anterior, funcionando sem qualquer alinhamento com o atual. A partir de 2025, haverá oportunidade de se adotar uma nova orientação. Nesse sentido, o objetivo final seria reduzir os níveis de juros necessários para manter a inflação sob controle. Para tanto, quanto mais fácil a comunicação e maior o apoio às estratégias adotadas, melhores tendem a ser os resultados. Assim, pode ser recomendável manter, tanto quanto possível, o “arcabouço” existente para essas políticas.

Nesse sentido, o principal referencial para as decisões de política monetária tem sido as expectativas de inflação – com formação comandada pelo mercado financeiro – e a taxa de juros neutra – aquela que manteria a inflação inalterada. As expectativas de inflação podem ser entendidas como racionais, no sentido de que os formadores conheceriam o verdadeiro funcionamento da economia e antecipariam os níveis de inflação futura com base nas informações que possuem e para um cenário sem alterações. Também podem ser entendidas como autorrealizáveis, na medida em que os formadores de preços acreditem que ela ocorrerá e sigam ajustando seus preços acima, no nível ou abaixo delas, conforme estejam as suas vendas.

Assim, estando as expectativas “ancoradas” nas metas de inflação, a taxa de juros praticada deve ser a neutra; estando acima das metas, ela deve ser mantida acima da neutra, a fim de retrair a atividade econômica e trazer as expectativas de inflação para as metas. As estimativas de taxa neutra para o Brasil são altas, supostamente devido a uma inércia inflacionária intensa e persistente. Nesse contexto, condições que podem “desancorar” as expectativas inflacionárias, como desvalorizações cambiais e níveis de produção superiores ao normal para a capacidade produtiva existente, podem exigir taxas ainda mais altas.

Um agravante adicional, que pressionaria os juros mais para cima, seria o “risco fiscal”, aumentado com gastos ou déficits públicos primários, que levaria os detentores a exigir prêmios maiores para continuar carregando os títulos públicos. (Esse argumento tem sido utilizado insistentemente pela mídia e pelos agentes do mercado financeiro, vindo a ser incorporado pela opinião pública. Ainda assim, é questionável, tendo em vista as taxas praticadas, nas últimas décadas, para controlar a inflação, serem quase sempre muito mais altas que as do resto do mundo, em função de nossas elevadas taxas neutras. Essa condição já não acomodaria os prêmios de risco exigidos para o carregamento de uma dívida sem qualquer indício de fuga?).

Enfim, esta seria a narrativa predominante, onde se acredita que o Banco Central e o governo nada mais poderiam fazer para controlar a inflação além de ir ajustando a taxa Selic em torno de valores exorbitantes, sendo a principal causa da elevação do próprio endividamento, enquanto vai cortando despesas, indiscriminadamente, para amenizar esse endividamento e, em algum momento, poder reduzir a carga tributária. Com essa política orientada pelo o mercado, espera-se que os investimentos privados floresçam e que a economia ganhe eficiência, produtiva e alocativa, passando a crescer de modo sustentável. Essa seria a proposta dos economistas alinhados com os que perderam as últimas eleições presidenciais.

Os que acreditam na política para promover crescimento inclusivo, identificam a necessidade de serviços e investimentos públicos, além de políticas assistenciais, que requerem gastos públicos e inflação controlada, inconciliáveis com o atual regime de política macroeconômica. Em termos fiscais, deve-se evitar desvios, desperdícios e favorecimentos, mas muitos dos aumentos do dispêndio público são essenciais e devem ser financiados, preferencialmente, com maior tributação sobre os mais ricos, havendo espaço para endividamento adicional.

Em relação às políticas de estabilização, o objetivo principal seria manter a inflação controlada com as menores taxas de juros possíveis. Nesse sentido:

i. O governo poderia agir mais nos mercados para flexibilizar o PIB potencial e amenizar choques de oferta, com fundos de estabilização de preços, estoques reguladores, impostos de importação e exportação flexíveis, ativos e incentivos fiscais/creditícios a setores pressionados.

ii. A meta para inflação poderia ser elevada, considerando que o seu centro em 3% ao ano seria muito restrito para a economia brasileira.

iii. A influência do Banco Central poderia ser mais intensa e direta sobre as taxas mais longas que um dia, como já vem sendo feito há vários anos pelos maiores bancos centrais do mundo, com programas de compra e venda de ativos, como forma de amenizar volatilidade e movimentos especulativos, por si só diminuindo os níveis necessários de taxas praticadas. (As chamadas operações compromissadas, realizadas para vários períodos, podem ser uma alternativa mais próxima aos atuais procedimentos operacionais).

iv. Maiores restrições à alavancagem de crédito pelas instituições financeiras poderiam ser adotadas, como elevações nas alíquotas de recolhimento compulsório e nos índices mínimos de Basiléia.

v. A política cambial poderia ser mais ativa, para minimizar os impactos das taxas de câmbio nos preços. Swaps cambiais e atuação no mercado à vista podem reduzir os efeitos de movimentos especulativos e a volatilidade nessas taxas. Os elevados montantes de reservas internacionais e o robusto financiamento das transações do país com o exterior poderiam viabilizar até a manutenção de bandas. (De 2002 a 2024, apenas em três anos os investimentos estrangeiros diretos não chegaram a cobrir integralmente os déficits em transações correntes, alcançando 95%, em 2010; 85%, em 2013; e 80%, em 2014).

Em síntese, o crescimento sustentável, inclusivo e com ganhos de produtividade depende de maior participação da tributação dos mais ricos no financiamento do Estado e de queda substancial nos níveis de juros praticados. Dentro dos atuais marcos institucionais, o governo precisa vencer as resistências, entrincheiradas no Poder Legislativo, a esses aumentos de tributação. Quanto às diminuições nas taxas de juros, o embate estaria mais concentrado no setor financeiro, onde o Banco Central, com o apoio do governo, precisa aumentar sua influência sobre preços estratégicos e mostrar capacidade de manter a inflação controlada com essas taxas mais reduzidas.

*Fernando de Aquino é economista, doutorado em Economia pela UnB, analista do Banco Central e membro da Comissão de Política Econômica do Cofecon.

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