Artigo: Dívida, desenvolvimento e desigualdade regional

Por João C.S. Marques e Carin C. Deda

A história da dívida pública nos estados brasileiros é uma complexa teia de decisões estratégicas e esforços para o desenvolvimento econômico. Essas decisões, em muitos casos, são tomadas isoladamente ou pelos Estados ou pela União de forma impositiva. Em uma nação marcada por vastas desigualdades regionais, com baixo nível de integração na política federativa e diante de escassez de recursos financeiros, o endividamento público é ferramenta crucial dos estados para impulsionar o seu crescimento econômico.

A magnitude dessas dívidas varia, refletindo tanto a capacidade econômica e de articulação política, quanto necessidades locais de cada ente. Mas, não é coincidência que os estados com maior Produto Interno Bruto do país são os com maior nível de endividamento. Nos últimos dados do IBGE (2021), o PIB de São Paulo (SP) soma R$ 2,7 tri, o do Rio de Janeiro (RJ) R$ 949 bi, Minas Gerais (MG) R$ 857,6 bi e Rio Grande do Sul (RS) R$ 581,3 bi, a soma equivale a 56,7% do PIB nacional, enquanto as demais 23 Unidades Federativas (incluindo DF) somam 43,3%. Por sua vez, do saldo devedor em 2023 da principal dívida dos estados com a União (Lei nº 9.496/1997), que alcança R$ 740 bilhões, SP, RJ, MG e RS respondem por R$ 660 bilhões, ou seja, 90% do estoque.

As dívidas nos estados de maior PIB do Brasil são, em sua maioria, heranças de 1980 e 1999, ou parte da dívida decorrente de renegociações do endividamento público com a União após o fim dos bancos estaduais. Esse endividamento com a União reduziu a capacidade dos estados de se financiarem em prol de auxiliar no controle macroeconômico do país. Essa dívida, contudo, não se traduz apenas em aspectos financeiros, os estados mais endividados foram os que realizaram amplos investimentos e conseguiram financiar a ampliação da infraestrutura, possibilitando atrair mais capital, e, portanto, alavancar o crescimento de suas economias.

O próprio processo histórico brasileiro ajudou com que esses estados, sobretudo os três maiores, detivessem a maior estrutura política e econômica para captação de recursos e financiamento. Soma-se a esse vetor, a baixa articulação nacional à época em unificar projetos interestaduais e por “terceirizar” o investimento estratégico aos estados sem visar as questões regionais, dessa forma, o endividamento fomentou o crescimento da desigualdade regional.

O governo federal tem reconhecido os desafios impostos pela dívida dos estados, implementando projetos que visam facilitar a renegociação dessas obrigações e reduzir penalidades. Iniciativas mais recentes pretendem ajustar os termos de pagamento, como taxas de juros e prazos, em um esforço para aliviar a carga financeira dos estados mais endividados, especialmente daqueles que aderiram ou estão em processo de adesão ao Regime de Recuperação Fiscal – RRF. São eles, além de três dos quatro de maior PIB (RJ, RS e MG), o estado de Goiás.

No entanto, a ironia desse cenário é palpável, especialmente quando comparamos os dados dos estados disponibilizados pela Secretaria do Tesouro Nacional – STN. Enquanto os quatro mais endividados (localizados no Sul e Sudeste) possuem uma dívida acumulada de 167,4% da sua Receita Corrente Líquida – RCL, em média, e esse endividamento possibilitou que fizessem investimentos robustos em suas estruturas ao longo dos anos, por sua vez, os estados do Norte e Nordeste, possuem um baixo nível de endividamento 10,5% e 31,3% da RCL, respectivamente, e não foram capazes de capitalizar seus investimentos em igual proporção. Além disso, deve-se pontuar que o Governo Federal criou nos últimos 10 anos inúmeras medidas que impõem condições adversas para novas operações de crédito e para o endividamento com a União.

Essas medidas vão, em sua maioria, em direção ao auxílio aos entes em situação fiscal delicada, sem contemplar incentivos para os que mantêm uma boa situação fiscal. Um exemplo disso foi a recente alteração na metodologia de cálculo da Capacidade de Pagamento (Capag), dos entes federativos, calculada pela STN, que resultou na inclusão da nota “A+”, modificação que estaria em consonância com o aperfeiçoamento das contas públicas se o objetivo estivesse pautado no estímulo à boa gestão fiscal, a partir de critérios que facilitassem acesso ao crédito de forma mais célere e com menor custo aos entes que alcancem esta classificação. Todavia, a nota “A+” não oferece diferencial ou benefício. Sob essa ótica, não vale a pena pagar a dívida em dia e manter excelência na capacidade de pagamento.

A ironia, portanto, consiste no fato de que estados com menos dívidas, melhores condições fiscais e com maior necessidade de financiamento não sejam beneficiados por incentivos a novas operações e nem recebem os mesmos benefícios oferecidos aos mais endividados.

É importante ponderar que o debate não trata da negativa de fortalecer o plano de recuperação fiscal aos estados com muitas dívidas e que respondem por grande parte da atividade econômica brasileira, já que sua recuperação é necessária para o crescimento da economia nacional. O que se pretende é que se tenha, no mínimo, isonomia na relação entre a União e todas as Unidades Federativas. Isso exige não somente condições equivalentes no tratamento das dívidas, como considerações acerca das estruturas regionais diferentes, das necessidades e do gap histórico de cada estado.

As regras fiscais, de transparência e de contabilidade são inúmeras e são aplicadas com ampla isonomia e cobrança, independentemente do tamanho do ente subnacional. Essa prestação de contas é essencial para a democracia brasileira, contudo, é preciso que se ponderem condições reais para que isso seja realizado, imposições diretas da União criam custos e burocracias que os menores são incapazes de resolver ou enfrentam grandes dificuldades. Essas ações aumentam as disparidades regionais quando não consideram as peculiaridades locais. Imaginemos que as mesmas exigências existentes para São Paulo são aplicadas no Amapá ou as mesmas exigências para a cidade do Rio de Janeiro – RJ são aplicadas em Marajá do Sena – MA, e, em nenhum dos casos há ponderação com base em suas estruturas financeiras e econômicas.

Mas, para além das questões de regramento fiscal ou de transparência, a União precisa retomar o papel de coordenação federativa para o desenvolvimento do país. Combater as disputas interestaduais é fundamental, mas essas disputas precisam ser atenuadas por meio de isonomia nas políticas nacionais e estratégias que visem equilibrar as estruturas diferentes, caso contrário, a atração de investimentos será sempre pautada em guerra fiscal ou de outra natureza, visto que as desigualdades de infraestrutura já estão postas.

Essa situação amplia as desigualdades regionais já profundas no Brasil. Enquanto alguns estados lutam sob o peso de suas obrigações financeiras, outros, menos endividados, são paradoxalmente penalizados por seu histórico de prudência fiscal, o que coloca em descrédito seus esforços para o ajuste fiscal realizados ao longo de vários períodos. Por outro lado, há sempre a presunção de que a União irá socorrer os entes em dificuldades financeiras, logo, a má gestão pública só piora e a boa não melhora, pois não tem incentivos para tanto.

Essa discrepância não apenas destaca a necessidade de uma política mais equitativa que reconheça as peculiaridades regionais, mas também sublinha a urgência de repensar a forma de alocação dos recursos e como as dívidas são gerenciadas no federalismo fiscal brasileiro.


João C. S. Marques é economista, mestre em desenvolvimento socioeconômico e conselheiro do Corecon-MA. Carin C. Deda é economista e mestre em gestão urbana.