Podcast Economistas: Inflação e hiperinflação no Brasil
Desde o primeiro surto inflacionário, na década de 1940, até a implementação do Plano Real, o Brasil conviveu com períodos de inflação alta. André Roncaglia fala sobre o assunto
Está no ar mais uma edição do podcast Economistas e nesta semana temos o segundo episódio da série Memórias e Futuro da Economia Brasileira, um projeto do Cofecon para estimular o conhecimento da nossa história. O tema é a inflação e a hiperinflação ao longo do Século 20 e quem fala sobre o assunto é o economista André Roncaglia, doutor em Economia do Desenvolvimento pela Universidade de São Paulo e professor da mesma instituição. Ouça no player abaixo ou na sua plataforma favorita.
O primeiro grande ciclo inflacionário no brasil é registrado na década de 1940. Entre os anos de 1940 e 1949 a inflação acumulada superou os 215%, uma média de 12,2% ao ano. “A Segunda Guerra Mundial afeta muito o cenário externo brasileiro e o balanço de pagamentos, com a dificuldade do Brasil de importar as mercadorias e as restrições ao comércio, o que afeta a capacidade de manter uma trajetória estável da nossa moeda”, explica o economista. “A combinação de desvalorização cambial e pressões que vêm da falta de alimento e de insumos internamente, isso tudo gera pressão inflacionária”.
“Ela é depois parcialmente moderada, pelo arranjo que se faz no governo Dutra, com controle cambial e restrições às importações e uma canalização desse impulso econômico e dinâmico para o setor industrial – o que acaba sendo chamado em algumas teses de industrialização inconsciente”, explica Roncaglia. “Os anos 50 são muito importantes. Existe esse esforço de Getúlio Vargas para iniciar esse processo de industrialização consciente, com a criação de várias empresas estatais e novas instituições do desenvolvimento, combinadas exatamente com o problema da importação, que vinha com a paralisação do comércio internacional, com medo da extensão da guerra da Coreia”.
Além das pressões cambiais, a industrialização trouxe conflitos distributivos que se refletiram na inflação da década de 1950 – que acumulou 460% em dez anos. “Resultou na criação de uma classe operária que pressiona por elevação de salários, e o João Goulart, que era ministro do Trabalho no governo Vargas, sempre procurava dar aumentos aos trabalhadores, o que pressionava a inflação”, conta Roncaglia. “Até meados dos anos 60, a estrutura fiscal brasileira era altamente indutora e alimentadora da inflação. Ela não conseguia tributar as classes de renda mais elevada, enquanto gerava pressões de gastos na base da sociedade, seja pelo investimento, seja pela tentativa de melhorar a distribuição de renda via salários ou salário mínimo”.
Em 1964 a inflação supera 90%, registrando o índice mais alto até então. O Plano de Ação Econômica do Governo permitiu controlar a inflação nos dez anos seguintes. “Ele inicia com um arrocho salarial muito forte, uma regra que tentava concentrar o conflito distributivo disperso na sociedade. O governo centraliza isso numa superindexação de salários, com uma regra de crescimento que leva em conta a inflação anterior e um ganho de produtividade em torno de 2%. Só que na sequência vem o milagre econômico, o PIB cresceu a taxas de 10%”, aponta o economista. “O governo centralizou o controle sobre os salários e começou um processo de reconstrução da capacidade fiscal do Estado, o que, de certa forma, leva ao nosso arranjo fiscal até os dias de hoje. Muito do que conhecemos foi criado naquele período, desde impostos como o embrião do ICMS até instituições como o Banco Central”.
A indexação mencionada por Roncaglia apareceu não só nos salários, mas também nos títulos públicos e privados de dívida. No curto prazo, a medida reduziu a incerteza, permitindo o reajuste nominal dos contratos de acordo com a inflação passada. Entretanto, o professor menciona que embora o Plano de Ação Econômica do Governo tenha controlado a inflação na década de 1960, a indexação trouxe um elemento que alimentou a hiperinflação na década de 1980.
“Ele também acabou gerando ali as sementes da instabilidade que viria depois. Na medida em que o governo aplica esse estatuto da indexação, que nesse caso tem um aspecto formal, a persistência do ambiente inflacionário faz com que essa indexação formal vá gradativamente se disseminando na sociedade na forma de indexação informal, inserindo na dinâmica da inflação um elemento de autossustentação que depois viria a ser chamado de inércia inflacionária”, afirma Roncaglia. “Ao mesmo tempo que isso consegue acalmar e estabilizar a economia, de certa forma, cria na, vamos dizer, na programação básica da economia, uma sensibilidade imensa a choques de custo e choques externos”.
O professor Dércio Garcia Munhoz escreveu que o processo inflacionário, antes dos anos 80, era visto como um aliado para que a economia pudesse manter altas taxas de crescimento, mas que a partir daquela década ele passou a ser um inimigo a ser combatido. Em 1980, logo após o segundo choque do petróleo, a inflação anual chegou à marca de cem por cento, o que era algo inédito para a economia brasileira naquele momento, mas também um número que seria facilmente superado nos anos seguintes, quando o brasil enfrentou a crise da dívida.
“Particularmente, há uma contribuição do ex-ministro Delfim Netto. No início do governo Figueiredo ele toma a decisão de encurtar o intervalo entre o reajuste dos salários, no contexto da indexação, de um ano para seis meses. Isso essencialmente duplicava o ritmo de crescimento da inflação”, observa Roncaglia. “Alguns meses depois, ele fez uma maxidesvalorização do câmbio. É como se preparasse o solo para o crescimento da inflação e, na sequência, empurrasse todos os custos para cima. Veja a sensibilidade que o sistema de preços assume quando a inflação se dissemina”.
Na segunda metade da década de 1980, o governo Sarney foi marcado por uma série de planos econômicos com o objetivo de combater a inflação. Em 1986 o Plano Cruzado utilizou o mecanismo do congelamento de preços. No entanto, mesmo com a inflação virtualmente controlada, ainda havia pressões de preços, a balança de pagamentos do país estava bastante deteriorada e houve uma queda importante nas reservas internacionais, o que tornou inviável a sua manutenção.
“Os outros planos foram, de certa maneira, adaptações deste primeiro. Numa data de surpresa, ele disse que nenhum preço mais pode subir. Era o chamado choque heterodoxo. A partir disso, tenta-se fazer uma correção de categorias de contratos, sejam financeiros, sejam de outros preços. Até que todos consigam equilibrar seu patamar de renda no nível de preços congelado”, conta Roncaglia. “Por que isso é um problema? Porque congela uma distorção. Este desequilíbrio não era corrigido, ele persistia”.
“A ideia do plano era, conforme o tempo fosse passando e os efeitos nocivos da inflação fossem eliminados, que a própria dinâmica da economia, favorecida pelo setor externo via importações, amorteceria estes desequilíbrios”, relembra o economista. “Mas o choque era tão potente que gerou um surto de consumo. Havia muita demanda represada por causa da inflação. E quando o governo tentou flexibilizar o câmbio para poder garantir superávits comerciais, essa deterioração gerou pressões internas. O governo começou a fazer puxadinhos, soltando os preços, e aquele desequilíbrio que ficou congelado volta a aparecer”.
Após o Plano Cruzado seguiram-se vários outros planos de estabilização que também fracassaram em seus objetivos. Entre eles, podemos citar o Plano Cruzado 2, o Plano Bresser e o Plano Verão, ainda no governo Sarney; e os Planos Collor 1 e 2 no governo de Fernando Collor de Mello. Após um período de breve estabilização, a cada um destes planos seguia-se uma inflação ainda maior, que superou os 1.000% em 1988 e os 2.000% em 1993.
Em 1994 foi implementado o Plano Real, que introduziu durante um período de quatro meses a unidade real de valor, a URV. Ela tinha sua cotação atualizada diariamente e servia como parâmetro de valor para transações. No dia primeiro de julho, foi implantada a nova moeda, o Real, com uma taxa de conversão de 2.750 cruzeiros reais.
Desde então, a inflação no Brasil tem estado sob controle e apenas quatro vezes ela encerrou o ano com um índice acima de 10%. O Banco Central persegue metas de inflação que, durante vários anos, foram de 4,5% e que hoje estão em 3%. Se por um lado existe, nos dias atuais, muita discussão quando a inflação se posiciona acima da meta estabelecida pelo conselho monetário nacional, por outro também é verdade que nunca mais voltamos ao nível de inflação da década de 1940.