Tendências de um governo social-democrata na economia
Crescimento deve vir de uma tributação progressiva e do domínio da taxa de juros, escreve Fernando de Aquino
Por Fernando de Aquino, originalmente publicado no Poder360.
Depois de toda a onda de desinformação que dominou as eleições em geral, venceu uma candidatura de frente ampla, que inclui de comunistas a liberais moderados e até adesistas. Mas a hegemonia é dos sociais-democratas, que predominam no PT. Isso significa que o segmento dominante não pretende eliminar a propriedade privada, muito menos deixar tudo ser determinado pela “lei da selva” do mercado.
A social-democracia não considera Estado e mercado como elementos antagônicos, demonizando um e defendendo que ele seja encolhido enquanto idolatra o outro, a ser potencializado como um fim em si mesmo. Ambos são tratados como instrumentos complementares; meios de melhorar a qualidade de vida de todos. Poderia ter como lema algo como: “Não há salvação só com política ou fora da política”. Reconhece que, muitas vezes, o Estado é ineficiente, desviando e desperdiçando recursos, mas que é preciso lidar com isso sem aniquilá-lo, pois ele permanece indispensável para a promoção da justiça social e do desenvolvimento.
No geral, o que vai melhor a qualidade de vida são elevações da remuneração do trabalho. Ganhos de produtividade –fazer mais com o mesmo– podem propiciar tais elevações; daí a importância de avanços na industrialização e na complexidade produtiva. Essa agenda, entretanto, não garante resultados satisfatórios por si só, pois depende da parcela apropriada pelo capital e do quanto restará para o trabalho, diretamente e em termos de recursos para políticas sociais e assistenciais.
Vale destacar que não é a remuneração de pequenos e médios empreendedores e profissionais liberais que precisa de redução, mas a dos que têm sido mais privilegiados, com recebimentos de fluxos milionários de juros, lucros e dividendos e pagamento de baixa tributação. Ações como uma tributação geral progressiva, por exemplo, com os muito ricos pagando uma proporção maior de sua renda e riqueza que os pobres e camadas médias, são indispensáveis.
Para a promoção do crescimento econômico, o recurso ao endividamento público pode ser aceitável e até desejável. Num governo de conciliação e de restauração das instituições, não valeria a pena testar os limites do mercado no carregamento da dívida pública sem qualquer parâmetro, pois eventualmente levaria a fugas de capitais, exigindo medidas compensatórias do Banco Central para controlar aumentos do dólar no mercado interno, por seus efeitos adversos sobre inflação e investimentos produtivos.
O desempenho de nosso setor externo tem sido suficientemente robusto para não temermos eventuais fugas de capitais. Nossas transações correntes não dependem, sistematicamente, de capitais além dos investimentos diretos desde o final do século passado e nossas reservas internacionais estão em torno de 20% do PIB há 8 anos. Contudo, melhor o caminho mais suave de um planejamento criterioso e transparente de gastos financiados com endividamento, para serem compatíveis com crescimento futuro da arrecadação e das dimensões do PIB, que compensem satisfatoriamente aquele maior endividamento inicial.
Juros e inflação
Há algo ainda mais importante do que produtividade, progressividade tributária e gastos públicos autofinanciáveis: alcançar e manter taxas de juros mais civilizadas. Os níveis praticados nas últimas décadas têm sido a principal fonte de concentração de renda e riqueza no país, tanto por remunerar o capital financeiro com taxas exorbitantes quanto por estabelecer um piso muito alto para a remuneração do capital produtivo. Muitos fazem as contas e só aceitam retornos, no setor produtivo, superiores aos obtidos em aplicações financeiras.
Altas taxas de juros têm, ainda, outros efeitos adversos, como travar o crescimento econômico, que, no ritmo atual, muitas vezes nem acompanha o crescimento da população –em função do crédito se manter entre os mais caros do mundo e da referida remuneração mínima que estabelece, deprimindo investimentos no setor produtivo. Também dificulta a gestão da dívida pública, uma vez que ela se expande de forma absoluta e relativa, com crescimento superior ao do PIB. A persistência dessa condição tem levado à compensação por aumento de tributos e cortes de gastos, o que prejudica o financiamento das políticas que beneficiam a população e dos incentivos governamentais à geração de empregos e ao crescimento econômico.
Em todo caso, reduções de taxas de juros sempre serão um elemento a favorecer todos esses processos –combater concentração de renda, destravar a atividade econômica e viabilizar políticas públicas promotoras de equidade e crescimento. Restaria conciliá-las com o controle da inflação. Este seria a prioridade absoluta: o descontrole tem sido o principal propagador de perda de qualidade de vida ao rebaixar o poder de compra de todos. A solução é que se mantenha o controle da inflação por políticas complementares, para que não se necessite de taxas de juros tão altas.
Uma modalidade de política complementar é pela atuação do governo nos mercados do setor produtivo. No curto prazo, calibrando impostos indiretos –diminuir taxação sobre importações e aumentar sobre exportações para produtos de grande impacto sobre a inflação. Também alterando o método de formação dos preços da Petrobras, substituindo a regra atual, que repassa ao consumidor as variações de câmbio e de preços externos, por reajustes com base nos custos, externos e internos, mais um fundo para suavizar as variações. No médio prazo, recuperando os estoques reguladores de produtos agropecuários para realizar compras e vendas estabilizadoras de preços e reestruturando a matriz energética, com ampliação da capacidade de geração com formas mais baratas, como a hidroelétrica, solar e eólica, e desativação das caras e poluentes termoelétricas.
Outra modalidade de política complementar seria alterar o próprio modelo de política monetária, adotando metas explícitas para taxas de juros mais longas, que são relevantes para influenciar inflação e investimentos. Atualmente, o Banco Central do Brasil opera com metas apenas para a Selic –taxa de um dia que pratica com os bancos– para influenciar as mais longas, que têm sido determinadas pelo mercado.
Com essa determinação pelo mercado, a curva de juros –taxas para os diversos prazos– fica mais volátil do que seria se estabelecida pelo Banco Central. Maior volatilidade exige uma curva mais elevada para manter o controle da inflação. O Banco do Japão já utiliza metas explícitas para taxas longas desde 2016, Em 2022, a Fiesp fez essa recomendação: “São necessárias a desindexação da economia brasileira e a possibilidade de atuação do Banco Central ao longo de toda a curva de juros”.
Com as taxas oscilando em níveis menores, seria possível estabelecer uma regra de ouro para a política monetária: elas não ultrapassariam as taxas de crescimento do PIB. Isso implica que elas não mais perturbariam a política fiscal, suas receitas e gastos no setor real. Além de viabilizar curvas de juros mais baixas, as metas diretas para taxas mais longas suprimem a necessidade de serem influenciadas pela Selic, permitindo que esta última seja mantida em níveis muito mais baixos.
Dado que, desde a crise financeira de 2008, a participação da dívida líquida do setor público capitalizada pela Selic oscila entre 60% e 80%, os efeitos da sua manutenção em valores muito baixos, em termos de inibir concentração de renda e crescimento da dívida pública, seriam imensos. Em relação a possíveis efeitos instabilizadores de valores continuadamente baixos, uma evidência contrária é o período de junho de 2020 a novembro de 2021: nesses 18 meses, tivemos taxas Selic reais negativas, causando perdas nos ativos vinculados, sem que se observasse qualquer processo de fuga desses ativos.