Carta de dois simples economistas aos notórios Fraga, Malan e Bacha
Artigo de opinião publicado originalmente na Carta Capital. Por Guilherme Lacerda e Antônio José Alves Júnior
As mensagens de vocês são velhas e fortes, mas erradas
Olá colegas,
Vocês são reconhecidos intelectuais que já deram relevantes contribuições ao país. Suas opiniões ressoam nos ambientes assépticos dos mercados financeiros e pautam textos de articulistas e editorias dos grandes canais da mídia corporativa.
Nós, somos modestos economistas. Talvez o que dizemos não tenha o alcance do que vocês dizem. Também compartilhamos, contudo, da busca por um país menos desigual. Nossa visão da dinâmica econômica e da realidade nacional, porém, é distinta da de vocês. A palavra-chave que nos diferencia não é só pela “percepção”, um termo central na carta de vocês. É também pelos princípios.
O teor da carta de vocês ao futuro presidente Lula nos estimula a fazer algumas observações.
Primeiro, é certo que “a responsabilidade fiscal não é um obstáculo ao nobre anseio de responsabilidade social”. Pelo que foi a política econômica dos dois mandatos do Presidente que agora retorna, estamos seguros de que tal princípio não ficará em segundo plano. Fiquem tranquilos quanto a isso.
Segundo, vocês afirmam que o teto de gastos foi “uma tentativa de forçar uma organização de prioridades”. Aqui, é melhor seguirmos devagar com o andor, que o santo é de barro. Vocês se lembram do que foi o ano de 2016? Sabem como foi cunhado e amplificado o sofismável conceito de ‘contabilidade criativa’ e de ‘pedaladas fiscais’? Porque o time que tanto admira vocês, de repente, ali pelos idos de 2014, passaram a pensar só em dívida bruta e não em dívida líquida? Os créditos públicos eram de baixa liquidez? Como eles se comportaram nos anos seguintes?
E vamos deixar de lado – para não incomodar os leitores com tecnicidades – a referência às “operações estruturadas” do BC. Aqui, sim, temos um movimento da gestão da política econômica tão peculiar, brasileiríssimo, e com elevado poder corrosivo de nossas finanças públicas. Mas isso vocês não debatem – e desdenham daqueles que o fazem.
Um ponto nos traz curiosidade. Vocês afirmam que, por aqui, o governo é tido como um mau pagador. Como assim? Há menos de um ano a curva de juros real estava abaixo de um terço do que passou a estar em uma escalada de elevação tão veloz para corrigir o tal “hiato inflacionário”? A inflação que se manifestou foi derivada de uma pressão de demanda cujo remédio inexorável teria de ser na dose em que foi aplicado? Havia dificuldade antes para a administração da dívida pública? Podem nos explicar os fundamentos associados às variáveis do modelo que levaram às medidas tomadas? Sabem quanto a mais de recursos públicos está sendo sugado do orçamento PÚBLICO? Ou essa explicação é muito complexa e não faz sentido demonstrar que tal percepção é apenas uma constatação da realidade? Ipsum factum est.
Estamos de acordo que o mercado bursátil é importante para a economia, como fonte de financiamento. Mas, convenhamos, vocês não precisavam incensá-lo tanto. Até um aluno do 2º ano do bacharelado de nossa sinistra ciência conhece a relação entre a economia real e o circuito financeiro – e, se estudar direitinho concluirá ao final do curso que a financeirização de nossa economia é distorcida frente aos parâmetros internacionais. E não foi por indisciplina fiscal entre 2003 e 2013.
Outra coisa nos chama a atenção: não vimos carta de vocês diante dos feitos implacáveis do receituário guediano. Vocês realmente acham que estamos vivendo uma mera troca de bastão? Difícil acreditar. Onde vocês estavam diante de mais de R$ 700 bilhões de gastos “extra teto” em quatro anos, a maior parte após o auge da pandemia, diretamente para se criar uma nova percepção (de novo, ela) e tentar ganhar um jogo “na mão grande”?
Ilustres economistas, já faz muito tempo um de vocês cunhou a expressão “Belíndia” para expressar a vergonhosa realidade daquele tempo em nosso país. Passadas mais de cinco décadas, o que temos? A geração de vocês, a nossa geração, fracassou. Temos que reconhecer isso. Os postulados de vocês são os mesmos de antes. Não deu certo. O grande físico dizia que burrice é “continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes.” Então, tenham um pouco mais de cuidado ao formular suas prescrições.
As mensagens de vocês são velhas e fortes, mas erradas. Elas estão conectadas à concepção de equilíbrio estático, walrasiano, na linha do que a história mostra ter sido na “era vitoriana”.
Na verdade, achamos, sinceramente, que a missiva de vocês é imprópria e está fora de lugar. Querem impor princípios de política econômica a um líder político que, pela sua história e pelo que alcançou, merecia um pouquinho mais de respeito.
A carta de vocês nos remete a lembrar do grande Saramago, quando se comemora o seu centenário. Ele se notabilizou tão bem em mostrar os “desgovernos do mundo” a partir dos impulsos humanos, alguns de grandes alcances, outros nem tanto.
Fiquem calmos: nosso país será reconstruído a partir de “credibilidade, estabilidade e previsibilidade”. Três palavras singelas, expressadas por quem tem autoridade de sobra para consolidar “novas percepções” para o mercado, mas muito mais relevante para se perseguir a construção de uma verdadeira nação.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Guilherme Lacerda – Economista e professor universitário
Antônio José Alves Júnior – Doutor em Economia e professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Foi chefe da Assessoria Econômica do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, entre 2004 e 2005; consultor do Banco Mundial em 2009; e chefe do Departamento de Relações com o Governo no BNDES, entre 2009 e 2013.