Readensamento produtivo: o que é, porque é essencial
Artigo de Antonio Corrêa de Lacerda* e Cristina Fróes de Borja Reis* publicado no portal Outras Palavras
Conectar indústrias às diversas atividades econômicas do país, inclusive a agropecuária, é essencial para superar a reprimarização. Isso exigirá infraestrutura, inovação, relações exteriores altivas e novo pacto social para o desenvolvimento
Tendo recentemente participado de uma mesa redonda sobre o readensamento produtivo no Brasil, decidimos publicar conjuntamente algumas considerações sobre a indústria brasileira, considerando a possibilidade das urnas afirmarem um novo projeto de desenvolvimento.
A hora é agora, sempre. Poderíamos girar o diálogo em torno da ideia de que passou da hora, ou de que falta muito para que o readensamento produtivo se torne realidade. Mas preferimos nos posicionar a favor do presente e, propositivamente, lembrar do que é preciso fazer neste momento para o readensamento produtivo acontecer.
Resumidas definições
Primeiramente vamos alinhar as definições. Por densidade produtiva se entende o grau de conectividade entre os diversos segmentos de atividade econômica, por meio de relações de compras e vendas de insumos, matérias-primas, partes, componentes – mas também de tecnologias, atividades e tarefas das cadeias de valor. Portanto, todas estas redes entre agentes atuantes dos processos produtivos, que a gente pode pensar não somente em cadeia, mas na sua circularidade (incluindo o pós-consumo, com reuso e reciclagem) – que conformam o que chamamos de tecido industrial.
Logo, se estamos falando em readensamento produtivo é porque pressupomos que perdemos densidade produtiva e que sua retomada seria benéfica ao país. Afinal, diversos estudos apontam para desindustrialização no Brasil, com perda de relações inter e intra-setoriais e crescente porosidades em etapas e atividades dos processos produtivos. Tais ausências vão rompendo as correias transmissoras, ou melhor, transferindo para o exterior os impulsos dinâmicos do investimento, renda e emprego.
No caso brasileiro, em particular, as “porosidades” são mais frequentes e profundas nas cadeias produtivas de bens mais elaborados em termos de conhecimento e tecnologia. Neste ponto a gente retoma a discussão sobre a importância da indústria para o desenvolvimento econômico, que corresponde a uma disputa de “narrativa”, que hoje no Brasil adquiriu contornos bem toscos: a defesa do agronegócio como motor do desenvolvimento nacional.
Tal disputa remete ao debate fundador da Economia Política sobre vantagens comparativas. No modelo padrão de comércio Heckscher-Ohlin-Samuelson, os países devem se especializar na produção de bens com intensidade relativa de uso de um fator – capital ou trabalho – em que tenha abundância relativa no território em relação aos demais. Isso possibilitaria a convergência dos preços relativos dos bens e das remunerações do trabalho e capital entre países.
Mas para que esses resultados se realizem, contam com pressupostos como concorrência perfeita, imobilidade dos fatores entre países, tecnologia igualmente disponível para todos, entre outros. Ora, considerando que essas premissas não valem no mundo real, e desde uma perspectiva mais estrutural, não há como os resultados dessa aposta em supostas vantagens comparativas prevalecerem. Cai por terra, portanto, a ideia de que pelo Brasil ser rico em terra e em recursos naturais o desenvolvimento do agronegócio e a reprimarização das exportações significariam um padrão produtivo mais eficiente e desejável. Mas também não significa que seja indesejável.
O essencial a se analisar é aqualidade destas atividades, entendendo-se suas consequências sobre o conflito distributivo e sobre a natureza, para que possibilitem o sentido do desenvolvimento que o povo sonha. Se tomarmos como referência a Agenda 2030 da ONU (que ainda que tenha inconsistências e não espelhe exatamente as necessidades e anseios brasileiros, constitui-se em legítimo e arduamente consensuado acordo internacional), vamos enquanto sociedade em busca de melhorar as bases materiais da vida com sustentabilidade e inclusão. Ou seja, buscar uma densidade produtiva que zele pelo meio ambiente e diminua as desigualdades de poder e riqueza entre grupos de pessoas e classes sociais.
Ou seja, o desafio é encontrar uma rota para a dinâmica econômica que gere emprego e renda de qualidade, eleve o padrão geral de renda do país, seja redistributiva e justa, trazendo equidade de gênero, étnico-racial e de classe. Necessariamente, a partir de um referencial teórico novo-estruturalista, isto significa readensar o tecido produtivo, engendrando efeitos multiplicadores e de encadeamento.
Pode-se, sim, mobilizar o agronegócio, mas limitando-o a uma atuação engajada, que transfira tecnologia e conhecimento para a produção familiar no campo, que seja fortemente enquadrado na regulação ambiental, com condenação exemplar de crimes como queimadas e violências. Ao mesmo tempo, no campo industrial, haveria de se promover a concorrência nos mercados, gerar incentivos para que não fossem praticadas taxas de lucro abnormais, combatesse todo tipo de comportamento primitivo de acumulação de capital por parte de empresários que se dizem nacionalistas.
Pacto social e outros condicionantes
Conscientes disso, diversas entidades e associações produtivas têm preparado agendas industriais para influenciar os planos dos candidatos à presidência, governos estaduais, congresso nacional.
Essas iniciativas meritórias podem ir além ao firmar pactos pela indústria, apoiado no setor produtivo, no setor público, no setor educacional e nas entidades sociais, especialmente as trabalhistas. Em um momento tão agudo de crise, com a fome e a miséria assolando o Brasil, nos unir pode parecer utópico, mas indubitavelmente seria o mais racional. E não é impossível, como mostram os esforços do Fórum da Indústria da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC paulista.
Este pacto significa concordar sobre o sentido do readensamento produtivo: a inclusão e a sustentabilidade. De forma que as políticas públicas e estratégias empresariais, trabalhistas e educacionais sejam vencer os grandes desafios do desenvolvimento, ao invés de alavancar a indústria per se. Ou seja, a indústria seria um meio, não um fim. A partir deste entendimento, alguns condicionantes essenciais para o readensamento produtivo ser construído seriam financiamento, infraestrutura, fortalecimento do Sistema Nacional de CT&I (Ciência, Tecnologia e Inovação), regime macroeconômico favorável à demanda efetiva, relações externas possibilitadoras de uma integração financeira e produtiva mais altiva e soberana, reformas estruturais.
Quanto a estes tocantes, também é preciso atentar para suas qualidades. No caso do financiamento, expandir o crédito deve ser feito com foco nos objetivos do desenvolvimento, regulação, governança e compliance, em consonância com a Agenda 2030. Nesse sentido, vale conferir o Plano ABDE 2030, que estabelece cinco missões para o desenvolvimento a partir da atuação do BNDES, Finep, bancos regionais, cooperativas de crédito e agências de fomento etc.
Quando se defende investir em infraestrutura, não seria para viabilizar corredores de exportação ou privatizações para benefício de grupos de influência nacional e internacionais poderosos, como no passado recente, mas para promover uma sociedade carbono-zero e ao mesmo tempo fomentar a dinâmica e a concorrência dos mercados com inclusão. Seria para ampliar e melhorar redes de energia, moradia, transporte, telecomunicações e informática, educação, saúde, esporte, lazer e cultura.
Embora elevar o investimento produtivo seja o nosso desafio histórico, nesta conjuntura, a indústria está lidando também com os problemas de capacidade ociosa e de rupturas nas cadeias globais de valor (CGV). O primeiro requer que a demanda seja retomada, via gastos do governo, pois o consumo e o investimento não podem reagir sem incentivos. As exportações, por serem concentradas em commodities do agronegócio e da indústria extrativa mineral, não tem se mostrado uma solução. Afinal, ultimamente essas exportações vem crescendo sem puxar a economia. Ao contrário, estão causando mais destruição ambiental, fome e inflação. Assim, é crucial um regime macroeconômico favorável à demanda efetiva.
Então, é necessário ter a coragem de se corrigir um grande erro: o teto dos gastos. Precisamos que as políticas macro e fiscais levem a taxas de juros e câmbio consistentes com o readensamento produtivo. Juros que não sejam tão pesados para o capital de giro das micro, pequenas e médias empresas e para o consumo de baixa renda. E câmbio competitivo para a própria retomada da dinâmica industrial, sem ocasionar inflação e socialização das perdas.
Ora, resolver a questão das CGV nos leva a uma tautologia, pois as rupturas se devem, no plano interno, às tais porosidades do tecido produtivo que queremos solucionar com o readensamento produtivo. Mas, do ponto de vista externo, significa também pensar em saídas estratégicas ao fato de que suas governanças, marcadamente hierárquicas e dominadas por poucas empresas transnacionais e por Estados mais poderosos, não colocam o Brasil numa posição complexa das cadeias de valor. Ao contrário, tem sido dependente e, sobretudo desde o impeachment, decadente.
Assim, as nossas relações exteriores devem promover uma integração produtiva e financeira do Brasil mais altiva e ativa. Isso significa atuar estrategicamente tanto nas alianças com o Norte global, quanto com o Sul. Uma atuação defensora da multipolaridade, dos direitos humanos, da natureza e da democracia nos fóruns internacionais, bem diferente do que o atual governo vem fazendo – o que só deteriora nossas condições de sair da crise.
E a formulação de estratégias políticas, econômicas, tecnológicas e sociais mais inteligentes precisa de uma educação emancipatória, desde o ensino básico até as universidades ou instituições que geram mais avançadas tecnologias que temos no Brasil (e ainda temos). Faz-se mister um sistema nacional de CT&I com visão mais longo-prazista, no sentido do desenvolvimento inclusivo e sustentável.
Ressaltamos a máxima de que sem educação e CT&I, a sociedade pode percorrer perigosos caminhos anticivilizatórios, como a corrosão das instituições democráticas a partir da infiltração da religião, bandidagem e corrupção no Estado. Assim, devemos barrar o home-schooling, as censuras à liberdade de expressão e de informação, a proliferação de armas, a violência, a barbárie. Urge reforçar, por outro lado, a cultura cidadã e de paz, zeladora do Estado e do Direito.
*Antonio Correia de Lacerda é professor doutor e coordenador do Programa de Pós graduação em Economia Política da PUCSP e presidente do Conselho Federal de Economia – Cofecon.
*Cristina Fróes de Borja Reis é professora da pós-graduação de Economia Política Mundial da UFABC e diretora da Agência de Inovação da UFABC.