Exclusivo: entrevista sobre renda básica com Eduardo Suplicy
Entre as muitas consequências que a pandemia de Covid-19 trouxe sobre o mundo, uma delas se destaca no debate econômico: a inserção dos programas de renda básica na pauta de discussões. Quando foi necessário fechar o comércio, o governo reagiu aprovando um auxílio emergencial que teve um impacto imediato sobre a renda e o consumo de quase um terço dos brasileiros, tornando menos drástica a queda do Produto Interno Bruto no ano de 2019.
Um dos principais defensores dos programas de renda mínima no Brasil é o economista Eduardo Suplicy, vereador da cidade de São Paulo e senador durante três mandatos. Autor do livro “Renda de Cidadania: A Saída É Pela Porta”, publicado em 2002, Suplicy defende o pagamento de uma renda básica universal e apresentou um projeto de lei neste sentido. O projeto foi aprovado, tornando-se a Lei 10.835/04. A lei nunca foi regulamentada – entretanto, uma decisão do Supremo Tribunal Federal traz uma reviravolta neste sentido, determinando que o governo federal regulamente o assunto e pague uma renda básica à população mais pobre.
Suplicy conversou com exclusividade ao Cofecon sobre a proposta da renda básica de cidadania e o desenvolvimento do debate em torno desta ideia. Confira aqui a entrevista.
Cofecon – Há muito tempo o senhor é um grande defensor da renda básica de cidadania. Como se iniciou esta jornada?
Eduardo Suplicy – Sempre tive o propósito de contribuir para que o Brasil fosse caracterizado por se tornar uma nação justa e civilizada. E se quisermos construir uma nação justa e civilizada, precisamos levar em consideração aqueles instrumentos de política econômica e social que efetivamente contribuirão para isso. Valores que não sejam simplesmente a busca do interesse próprio, de levar vantagem em tudo, mesmo que pisoteando o próximo. Aqueles outros valores que também são próprios da história da humanidade e de nós brasileiros, valores como a fraternidade, a solidariedade, a preocupação com o progresso de todas as pessoas na sociedade. Valores como os que foram expressos num dos mais belos pronunciamentos da história da humanidade, I have a Dream, de Marin Luther King Jr, em que ele diz que tem o sonho de que um dia todas as pessoas, os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-donos de escravos, se sentarão juntos na mesa da fraternidade.
Cofecon – Quais são os instrumentos que podem contribuir para a realização da justiça?
Eduardo Suplicy – Quando abolimos a escravidão contribuímos para isso, mas não tomamos as medidas necessárias para compensar mais de 3 séculos de escravidão. Se nós provermos ótima qualidade de educação para todas as crianças e jovens, se possível em tempo integral, e para os adultos, inclusive os que não tiveram boas oportunidades quando eram crianças; se provermos atenção de saúde a todas as pessoas, em todos os bairros das cidades, no campo, ainda mais num momento como o desta pandemia do coronavírus; se nós, tendo em conta a grande disparidade de riqueza, inclusive fundiária, realizarmos mais depressa a reforma agrária; se nós provermos mais oportunidades de microcrédito para aquelas pessoas que não detêm patrimônio, mas têm capacidade de adquirir um instrumento de trabalho que lhes proporcione um padrão de vida adequado e a possibilidade de pagar o empréstimo em 12 ou 24 meses a taxas de juros módicas; se nós estimularmos as formas de economia solidária, de cooperativas, à luz dos ensinamentos do nosso querido professor Paulo Singer, estaremos elevando o grau de justiça.
Cofecon – No Brasil temos algumas formas diferentes de transferência de renda, como as do sistema previdenciário, o Benefício de Prestação Continuada, o seguro-desemprego, o salário-família, o abono salarial, o bolsa-família e agora o auxílio emergencial. Em que a renda básica de cidadania difere das outras propostas?
Eduardo Suplicy – Temos prevista na Lei 10.835/04 a renda básica de cidadania, que um dia será universal e incondicional para todos os residentes no Brasil, inclusive os estrangeiros aqui residentes há cinco anos ou mais. A ninguém será negado. Mas como assim? Vamos pagar uma renda básica até para o ministro Paulo Guedes, o presidente Jair Bolsonaro, o Pelé, a Xuxa e para o mais bem-sucedido empresário brasileiro? Para o Eduardo Suplicy? Sim, mas obviamente os que temos mais vamos colaborar para que nós próprios e todos os outros venham a receber.
Cofecon – Hoje fala-se em renda básica de cidadania, mas há algumas décadas atrás discutia-se o conceito de imposto de renda negativo, que, inclusive, foi uma das suas primeiras propostas de destaque.
Eduardo Suplicy – Quando cheguei ao Senado, eleito em 1990, apresentei um projeto de lei para instituir um programa de garantia de renda mínima através de um imposto de renda negativo. Toda pessoa adulta que não recebesse pelo menos 45 mil cruzeiros à época, equivalentes a 150 dólares mensais, passaria a ter o direito de receber 50% da diferença entre aquele valor e a renda da pessoa. À época, era a forma de garantia de renda mínima que eu conhecia nos meus estudos de mestrado e doutorado em economia. O projeto recebeu parecer favorável do então senador líder do PDT, Maurício Corrêa, para ser instituído ao longo de oito anos, começando pelos de 60 anos ou mais até que se chegasse a todos os adultos. O projeto foi aprovado por consenso do Senado após quatro horas e meia de debate em 16 de dezembro de 1991. Foi para a Câmara dos deputados, onde recebeu o parecer entusiasta do deputado Germano Rigotto, do PMDB.
Em agosto de 1991 o então coordenador do programa de governo paralelo do presidente Lula, Walter Barelli, convidou cerca de 50 economistas para um diálogo sobre proposições em Belo Horizonte. Eu e Antonio Maria da Silveira, que me ajudou na formulação do projeto, explicamos a ideia. O professor José Márcio Camargo, da PUC/RJ, defendeu que deveríamos começar pelas famílias mais carentes. Defendeu que se provermos uma renda mínima às famílias carentes, desde que os filhos estejam frequentando a escola, estaremos contribuindo para cortar um dos principais elos do círculo vicioso da pobreza.
Em 1995 o governador do Distrito Federal, Cristovam Buarque, e o prefeito de Campinas, José Roberto Magalhães Teixeira, iniciaram programas de garantia de renda mínima associados às oportunidades de educação. Dados os resultados positivos, dezenas de cidades seguiram aqueles exemplos. No Congresso Nacional surgiram propostas para que a União financiasse os municípios que adotassem projetos naquela direção.
Cofecon – Desde os anos 80 se discute, na Europa, a proposta da renda básica incondicional e universal. Como você teve contato com este debate e que importância ele teve no Brasil?
Eduardo Suplicy – No início de 1992 ganhei o livro Ethical Foundations for a Radical Reform, de Philippe van Parijs, e foi a primeira vez que me dei conta da renda básica incondicional e universal. Philippe esteve no Brasil em 1994 e, quando soube que eu havia apresentado este projeto aprovado no Senado, convidou-me para o quinto congresso da Basic Income European Network e ali pude conhecer não apenas Philippe, mas outros cinquenta economistas que tratavam do assunto.
Em 1996 ele veio novamente ao Brasil e eu o convidei para uma audiência com o presidente Fernando Henrique Cardoso para dialogar sobre os projetos. Estava presente o ministro da educação, Paulo Renato de Sousa, e ele explicou que o objetivo melhor seria ter uma renda básica incondicional, mas iniciar a garantia relacionando às oportunidades de educação significava um investimento em capital humano e era uma boa iniciativa. Foi então que FHC deu sinal verde para que aquele projeto fosse aprovado, gerando a Lei 9.533/97.
Poucos meses depois o presidente FHC criou o bolsa-alimentação, tendo como contrapartida a vacinação das crianças; o auxílio-gás, para que as famílias carentes tivessem acesso ao gás de cozinha; e o presidente Lula lançou o cartão alimentação, pelo qual as famílias carentes passariam a receber um cartão equivalente a 50 reais por mês que só poderiam ser gastos em alimentos. Eu estava presente quando o ministro José Graziano da Silva lançou o programa em Guaribas e Acauã, no interior do Piauí, as cidades com menores índices de IDH no Brasil.
Em outubro de 2003, tendo em conta a recomendação de um grupo de pessoas como a Ana Maria Medeiros da Fonseca, Miriam Belchior e outros economistas, foi recomendado ao presidente Lula unificar e racionalizar os quatro programas. Bolsa-escola, bolsa-alimentação, auxilio-gás e cartão alimentação foram unificados e racionalizados no chamado Bolsa Família, que em dezembro de 2003 tinha 3 milhões de famílias inscritas e beneficiárias, aumentando gradualmente até 2014/15 para 14,2 milhões.
Durante este período de 2003 a 2014-15, gradualmente foi diminuindo tanto o coeficiente de GINI, a proporção de famílias em condições de pobreza absoluta e pobreza extrema no Brasil, inclusive a ponto de 2014 a ONU ter dito que o Brasil estava saindo do mapa da fome.
Cofecon – Apesar de ainda não ter sido regulamentada, a renda básica de cidadania está presente na lei 10.835/04, que surgiu de um projeto de sua autoria no Senado.
Eduardo Suplicy – Interagindo com os economistas e filósofos que estudam a garantia de renda no mundo inteiro, fiquei persuadido de que melhor que um imposto de renda negativo associado à educação e saúde é a renda básica de cidadania, incondicional e universal. Em dezembro de 2001, apresentei um novo projeto para que a partir de 2005 fosse instituída a renda básica de cidadania. Em fevereiro de 2002 publiquei um livro Renda de Cidadania: A Saída É Pela Porta, no Fórum Social Mundial de Porto Alegre.
Na Comissão de Assuntos Econômicos o senador Francelino Pereira foi designado relator. Dei a ele meu livro e ele me disse: Eduardo, é uma boa ideia, mas você precisa torná-la com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Que tal você aceitar um parágrafo que diga que será instituída por etapas a critério do poder executivo começando pelos mais necessitados? Eu achei de bom senso e aceitei. Graças a essa recomendação do Francelino Pereira, em dezembro de 2002 o Senado aprovou por consenso de todos os partidos. Na Câmara, houve um consenso de praticamente todos os partidos. Conversei com o ministro Antonio Palocci, que disse ao presidente Lula que como era para instituir por etapas, poderia sancionar. Numa brevíssima cerimônia, levei minha mãe a Brasília pela última vez – ela viria a falecer aos 105 anos. Celso Furtado se encontrava lecionando na Sorbonne, em Paris. Eis a mensagem que ele enviou por ocasião da sanção do projeto: “Neste momento em que Vossa Excelência sanciona a Lei da Renda Básica de Cidadania, quero expressar a convicção de que com essa medida, nosso paíss se coloca na vanguarda daqueles que lutam pela construção de uma sociedade mais solidária. Com frequência o Brasil foi referido com o um dos últimos países a abolir o trabalho escravo; agora, com este ato que é fruto do civismo e da ampla visão social do senador Eduardo Suplicy, o Brasil será referido como o primeiro que institui um sistema de solidariedade tão abrangente e ademais aprovado pelos representantes de seu povo. Celso Furtado, Paris, 8 de janeiro de 2004. Aproveito a oportunidade para almejar a Vossa Excelência que continue a ter êxito na missão que lhe foi dada”.