Artigo – A economia reprodutiva: reflexões sobre a questão de gênero

A economia pode ser compreendida como um conjunto de atividades  desenvolvidas buscando a produção, distribuição e o consumo de bens e serviços. Ou ainda, a ciência que estuda a escassez, ou seja, como atender necessidades infinitas com bens finitos. Porém, por trás desta economia produtiva, a economia tradicional, que desconsidera em seu objeto de estudo o aspecto de gênero, há a economia reprodutiva, interrelacionada com a economia produtiva, porém comumente desprezada. Este artigo tem como objetivo realizar uma reflexão acerca da economia reprodutiva sob a ótica da realidade brasileira.

No que diz respeito a economia produtiva, esta é percebida como a economia que trata da produção, ou seja, criar bens e serviços para serem alocados no mercado. Refletindo sobre esta, tem-se que “O homo economicus é o protótipo de um indivíduo do gênero masculino, adulto, que não precisa cuidar das obrigações da casa, criar filhos, cuidar dos enfermos da família e nem dos pais idosos” (FERNANDEZ, 2018, p. 566). Na prática, este indivíduo não pode representar a metade da humanidade, composta por homens, e não pode representar o comportamento da outra metade formada por mulheres. Isto implica dizer que o pano de fundo da produção não traduz a realidade da sociedade, permitindo assim esta reflexão.

Definindo a economia reprodutiva, esta trata da reprodução social, ou seja, da continuidade, da manutenção da vida dos indivíduos. Esta reprodução social diz respeito as tarefas domésticas, ao cuidado das crianças e idosos bem como a manutenção do ambiente familiar. Tradicionalmente no Brasil, se espera que (e em grande parte dos casos de fato são) realizadas por mulheres, atividades estas que, de maneira geral, são desvalorizadas e desprezadas tanto pelos dados econômicos quanto na esfera particular.

Com o crescimento da participação das mulheres no mercado de trabalho tem havido uma exacerbação da jornada dupla e, muitas vezes tripla, de trabalho da mulher. Segundo dados do IBGE (2019) analisando o ano de 2018, as mulheres dispenderam, em média, 21,3 horas por semana tanto com tarefas domésticas quanto com cuidado de pessoas, quase o dobro do valor apresentado pelos homens, 10,9 horas. Este cenário era pouco impactado pela situação de trabalho da mulher, ou seja, mesmo trabalhando fora a mulher cumpria 8,2 horas a mais com tarefas domésticas que os homens. Se o comparativo fosse realizado entre homens e mulheres não ocupados, as mulheres trabalhavam 11,8 horas a mais que eles. O estudo destaca que nos últimos três anos, intervalo que compreende 2015 – 2018, houve aumento da participação masculina nos afazeres domésticos, porém, mesmo em situações idênticas de trabalho, as mulheres continuam a dedicar mais horas a este tipo de trabalho.

É válido ressaltar que a inserção da mulher na força de trabalho falha em apreciar como as hierarquias sociais e econômicas, que permeiam as relações de produção e as diferenças entre mulheres, no que diz respeito a classe, etnia e nacionalidade, impactam. Pois, com a análise dos dados agregados, perde-se o comparativo da realidade enfrentada pela mulher no seu dia a dia.

Fernandez (2018) afirma que atividades transformadoras produzidas e consumidas no espaço familiar, tradicionalmente, realizadas por mulheres, sem a contrapartida financeira, permanecem fora do interesse da economia tradicional, sendo foco da economia feminista. É fato que, apesar de inúmeras problemáticas enfrentadas pelas mulheres no mercado de trabalho, tais como incompatibilidade salarial e discriminações, o trabalho remunerado formal pode contribuir para a ampliação da autonomia e do poder na esfera privada da mulher. Em grande parte, este empoderamento feminino advém da obtenção da independência financeira.

Segundo os Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua o rendimento médio mensal real de todos os trabalhos foi de R$ 2.234 em 2018, analisando por sexo, a pesquisa mostra estimativas de R$ 2.460 para os homens e de R$ 1.938 para as mulheres. A Região Sul, apresenta a pior relação quando comparados os rendimentos entre homens e mulheres em todo o Brasil. Nesta, as mulheres possuem um rendimento médio mensal, em média, 74,5% menor do que o dos homens. O rendimento médio mensal real de todos os trabalhos no ano de 2018 foi, para brancos, pardos e pretos respectivamente, R$ 2.897, R$ 1.659 e R$ 1.636, ou seja, as pessoas brancas apresentam rendimento 29,7% superiores em relação à média nacional que é de R$ 2.334 (IBGE, 2019).

Outro aspecto relevante diz respeito a terceirização das atividades reprodutivas, ou seja, contratar outras pessoas ou empresas para realizar a limpeza da casa, a produção de alimentos, o cuidado com as crianças e idosos. Aqui o cuidado da análise deve ser ainda maior, pois, em geral, as pessoas que compõe esta terceirização recebem baixos salários e possuem condições precárias de trabalho. Engel (2020) afirma que, no Brasil, o emprego doméstico ainda é muito comum entre mulheres negras e de classes desfavorecidas. Este aspecto reflete o passado escravocrata brasileiro, tanto no que tange ao tipo de relação quanto na exploração deste tipo de serviço.

Com o advento da pandemia houve o agravamento nas condições de trabalho para as mulheres, uma vez que foram elas as que mais sofreram com o desemprego. Segundo o IBGE (2021) a participação da mulher no mercado de trabalho formal apresentou redução considerável. Isto porque o setor de serviços foi fortemente impactado, especialmente aqueles destinados às famílias, como por exemplo: hotelaria, restaurantes, turismo, serviços educacionais, entre outros. Tradicionalmente estas atividades econômicas empregam grande quantidade de mão de obra feminina.

A falta de vagas em empregos formais leva a população feminina ainda mais ao mercado informal. Mediante a necessidade de prover sustento às famílias, as mulheres buscam alternativas de trabalho e passam a exercer atividades de vendedoras ambulantes, vendedoras de cosméticos, confeitaria doméstica, faxineiras, entre tantas outras iniciativas para gerar renda para as famílias. Por mais que a sociedade ainda tenha dificuldade de aceitar, 43% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres (IPEA, 2019).

A resiliência com que as mulheres encaram a escassez de recursos, a discriminação de gênero, étnica e social, as dificuldades no mercado de trabalho e todas as agruras enfrentadas diariamente, é o ingrediente necessário para que a reprodução social possa acontecer. Em meio a tantas diferenças e frente ao comportamento mundial discriminatório, as mulheres encontram forças para seguir em frente e garantir as melhores condições possíveis para aqueles que dependem dos seus cuidados.

Em meio à crise econômica, social e de saúde pública que estamos vivendo, é uma mulher que vem sendo destaque nacional na busca por soluções palpáveis para amenizar os sintomas da crise. Primeiro, abriu oportunidades de negócios online para micro, pequenos e médios negócios, incentivando a manutenção do emprego. Em seguida, está liderando o movimento “Unidos pela Vacina”, para que todos os brasileiros sejam imunizados o mais rápido possível. Luiza Trajano, empresária, chefe de família, voluntária, filantropa, jornada dupla, tripla de trabalho, assim mesmo com olhar humanitário, social.

Quando se observa o contexto histórico das lutas feministas, percebe-se avanços consideráveis nas sociedades consideradas “modernas” e democráticas. Mesmo assim, a luta diária das mulheres para encontrarem e ocuparem seus espaços, para garantirem o direito de igualdade na sociedade, ainda demonstra a fragilidade dos avanços conquistados. É preciso repensar urgentemente o modelo social que permeia as relações cotidianas de produção e reprodução. Fica aqui um questionamento a respeito do que foi debatido neste artigo: é justo o que estamos vivenciando?


Referências Bibliográficas

IBGE (2021). PNAD. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios. Acesso em 13 de fev. de 2021.

IBGE (2019). PNAD. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/17270-pnad-continua.html?=&t=downloads Acesso em 11 de fev. de 2021.

IPEA (2019). Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada. https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=frontpage&Itemid=278. Acesso em 13 de fev. de 2021.

FERNANDEZ, BRENA PAULA. Economia feminista: metodologias, problemas de pesquisa e propostas teóricas em prol da igualdade de gêneros. Brazilian Journal of Political Economy, v. 38, n. 3, p. 559-583, 2018.

ENGEL, Cíntia Liara. ESFERA PRODUTIVA E REPRODUTIVA: DIMENSÕES E DESAFIOS PARA AS MULHERES. In: FONTOURA, Natália; REZENDE, Marcela; QUERINO, Ana Carolina (org.). Beijing +20: Avanços e desafios no Brasil Contemporâneo. Brasília: Ipea, 2020. p. 253-297.


Janypher Marcela Inácio Soares- Economista (UFSC), Especialista em Economia e Gestão das Estratégias Empresariais (UFSC), Especialista em Gestão de Logística (UNISUL), Mestra em Administração (UNIVALI) e Doutoranda em Relações Internacionais (UFSC). Professora, Responsável pelos Trabalhos Técnico Científicos de Conclusão e Coordenadora na Escola de Negócios da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Atualmente é Conselheira Suplente no Conselho Regional de Economia – CORECON/SC e Presidente da Comissão de Educação – CORECON/SC.

Marilei Kroetz – Graduada em Economia pela Universidade Federal de Santa Catarina (1999) e mestre em Teoria Econômica pela Universidade Estadual de Maringá (08/2006). Cursando doutorado em Economia no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa/Portugal. Professora efetiva da UDESC/CEAVI – Universidade do Estado de Santa Catarina – ministrando disciplinas de Economia Básica e da área de Finanças. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Teoria Econômica, atuando principalmente nos seguintes temas: economia brasileira, desenvolvimento regional. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional.