Artigo – A retórica do “ajuste fiscal” e “mais do mesmo”

Invariavelmente, ao longo dos tempos, o debate sobre o ajuste fiscal toma relevância no debate econômico. Temos assistido a recorrentes revisões do desempenho fiscal, sendo que, nos últimos quatro anos, implicando déficits primários. A opção escolhida tem sido sempre a de cortar gastos. Mas, diante da dificuldade e mesmo impossibilidade em fazê-lo especialmente nos gastos correntes, a diminuição de dispêndios tem se dado com ênfase em investimentos. Em paralelo, a busca de ampliação de receita via elevação de alíquotas tributárias e/ou criação de novos tributos muitas vezes se mostrou inócua, ou pouco eficaz.

As tentativas de “ajuste” não têm atingido o objetivo esperado. E isso se deve principalmente à longa crise que enfrentamos a partir do final de 2014. Desde então, o PIB caiu 3,5% em 2015 e mais 3,5% em 2016, acumulando uma queda de 7,1%. Em 2017 o crescimento foi de apenas 1,1% e 2018 não aponta aceleração expressiva. No mesmo período houve uma queda acumulada nos investimentos totais, públicos e privados, da ordem de 26%! Nível de atividade e investimentos em queda significaram arrecadação menor, não apenas porque empresas faturam menos, mas porque indivíduos têm a sua parcela de participação reduzida pela queda da renda e pelo aumento do desemprego. Além disso, na crise aumenta a inadimplência no pagamento de impostos.

O resultado é que as tentativas de ajuste não se realizam, e pior, a insistência na estratégia de cortar gastos é autofágica, implicando cada vez mais problemas. Medidas de ajuste, no sentido tradicional, só têm enfraquecido ainda mais a atividade produtiva, gerando deterioração maior do quadro das contas públicas. A questão fiscal só se resolverá de fato quando houver uma retomada da economia.

Outro problema análogo está na falha de diagnóstico e de estratégia na política econômica. A aposta em que o discurso de ajuste, reformas e a sinalização de medidas liberais pudessem resgatar a confiança e com isso a realização de investimentos e produção não tem dado resultado. Apesar das medidas adotadas, elas, por si sós, não criam um ambiente promissor para estimular a produção, o consumo e os investimentos. Ninguém toma decisões nessa esfera apenas porque adquire maior confiança na economia. Embora essa possa ser uma condição necessária, é, no entanto, insuficiente para propiciar a retomada.

É preciso mudar a politica econômica para incentivar as atividades. Isso implica alterar substancialmente a estratégia atual. O primeiro ponto importante é quanto ao papel do Estado e dos investimentos públicos. Em um quadro de crise, os investimentos públicos, assim como o papel do Estado de forma geral, devem ser anticíclicos, ou seja, se contrapor à restrição de gastos das empresas e famílias. Ao contrário do discurso governamental utilizado como argumento para a aprovação, no final do ano passado, da Emenda Constitucional (EC) 95, que fixou um teto para os gastos públicos correntes, incluindo os investimentos, o Estado não pode agir com uma empresa ou família porque tem obrigações que lhe são próprias.

Além do incremento do investimento público, é necessário criar condições favoráveis ao investimento, produção e consumo privados. Isso passa por adotar medidas estimuladoras. Adicionalmente à aceleração da queda da taxa de juros reais, é importante fazer com que essas medidas reflitam na queda da taxa de juros do crédito às empresas e pessoas físicas, dentre outras ações.

O “canto da sereia” da privatização

A tentativa de desqualificação do Estado e a onda privatista são recorrentes no debate econômico. Recentemente, uma grande consultoria internacional divulgou estudo apontando potencial de arrecadação de R$ 500 bilhões com a privatização de 168 empresas estatais. Embora seja tentador vender patrimônio em busca de receita fiscal, isso nem sempre significa uma solução, nem para a competividade sistêmica, nem do ponto de vista fiscal.

A segunda linha de argumentação pró-privatização é o combate à corrupção. Primeiro essa assertiva parte do pressuposto equivocado de que corrupção é um atributo restrito às empresas estatais, o que obviamente não se sustenta. Até porque, a corrupção tem dois lados, o do corrupto e do corruptor.

O terceiro aspecto é da estratégia de desenvolvimento. Sem um aparato regulatório expressivo não há saída. O Estado pode eventualmente se eximir de algumas atividades operacionais. No entanto, há questões de ordem regulatória, como definição de regras de atuação, de fiscalização que são precípuas do poder concedente, ou seja, do Estado. Nossa experiência pregressa já revelou grandes equívocos neste ponto, como na energia. Deveríamos ter aprendido com os equívocos passados.

O problema fiscal brasileiro deve ser abordado no âmbito das políticas macroeconômicas, assim como seu papel para o desenvolvimento econômico e social. Deve também contemplar a discussão sobre o custo de financiamento da dívida pública, que no Brasil atinge a média de 5,5% do PIB, ao ano, o equivalente a R$ 363 bilhões, em 2018. Destaque-se adicionalmente que a recessão de 2015 e 2016 e o baixo crescimento de 2017 afetaram negativamente a arrecadação tributária, comprometendo as metas fiscais.

A aposta em que o resgate da confiança pudesse estimular a realização de investimentos e produção não tem dado resultado. Os investimentos, medidos pela Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), embora ora apresentem leves sinais de reação ainda se encontram em um nível médio cerca de 25% menor ao observado em 2014, antes do início da crise. É inegável que a confiança seja importante. No entanto, ela, por si só, não garante um ambiente promissor para estimular a produção, o consumo e os investimentos. As empresas não tomam decisões apenas levando em conta o grau de confiança, mas a expectativa de desempenho futuro da economia.

Ademais, nosso modelo tributário regressivo, incidindo fortemente sobre o consumo e produção – e não sobre a renda e a riqueza – além de contribuir para uma maior concentração de renda, sobrecarrega o chamado “custo Brasil”, prejudicando o crescimento da atividade e a realização de investimentos. Há que se buscar, no âmbito de uma profunda reforma tributária, uma simplificação dos impostos visando, além de maior justiça social, um sistema mais dinâmico, transparente e eficiente.

Outro ponto relevante: é crucial buscar a desindexação da economia, inclusive da dívida pública. O Brasil é o único país que remunera parcela expressiva da sua dívida a taxas de juros reais altíssimas, independentemente do prazo de vencimento, oferecendo pelos seus títulos, ao mesmo tempo, liquidez, segurança e rentabilidade, na contramão de outros países, que estimulam o financiamento de longo prazo. Esse quadro cria um constrangimento para os gastos públicos, tornando mais difícil a execução dos investimentos, assim como a manutenção da qualidade dos programas sociais.

Da mesma forma, é fundamental manter e aperfeiçoar a atuação dos bancos públicos, especialmente o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), como impulsionadores do financiamento dos investimentos para a infraestrutura e outros setores, tendo em vista a inexistência de instrumentos de financiamento de longo prazo no mercado financeiro privado a taxas de juros minimamente compatíveis com a rentabilidade esperada dos projetos.

Garantir crédito e financiamento às empresas e consumidores a taxas de juros compatíveis com a rentabilidade da atividade produtiva e capacidade de pagamento dos tomadores é uma condição fundamental para a retomada do crescimento. No âmbito empresarial, diante da ausência de crédito de longo prazo privado no Brasil, o BNDES sempre exerceu um papel preponderante para isso.

No entanto, o governo federal decidiu, em 2017, por alterar a taxa de juros dos empréstimos ao setor privado, até então baseada na Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). A nova taxa é a Taxa de Longo Prazo (TLP) referenciada à taxa das Notas do Tesouro Nacional (NTN-Bs), de cinco anos, títulos públicos atrelados à inflação. A recente turbulência nos mercados torna o financiamento nos novos moldes inviáveis para a atividade econômica.

Embora seja saudável corrigir distorções e estimular instrumentos de mercado visando reduzir a dependência dos recursos públicos, é preciso fazê-lo com cuidado, diante da inexistência de um mercado privado que ofereça recursos compatíveis com a rentabilidade dos projetos. Sem financiamento compatível haverá o travamento dos investimentos planejados. A ideia implícita na TJLP era viabilizar os investimentos tanto para projetos de infraestrutura como das empresas, uma vez que a Selic ou a taxa de juros de mercado se distanciam da rentabilidade esperada dos projetos.

Um dos argumentos dos que defendem a alteração do critério é o de que essa prática implica uma espécie de subsídio. De fato, do ponto de vista fiscal stricto sensu e de curto prazo, o diferencial entre Selic e TJLP significa um subsídio, principalmente se considerarmos as taxas praticadas atualmente. No entanto, lembrando que o financiamento de projetos é de longo prazo e implica o efeito multiplicador dos investimentos realizados e o seu potencial arrecadador tributário, o alegado “subsídio” não se sustenta. Ademais, este só se daria por causa das elevadas taxas de juros praticadas.

Já sob o ponto de vista da competitividade, a TJLP não representava qualquer subsidio, simplesmente porque nossos concorrentes internacionais gozam de financiamentos a taxas de juros menores do que ela. Ou seja, a Selic é que precisa se aproximar da TJLP e não o contrário, mesmo porque não há projetos, ou atividades que ofereçam taxas de retorno semelhantes à taxa Selic, ou menos ainda as disponíveis para financiamento no mercado.

O diferencial apresentado tem sido determinante para o papel que o financiamento público teve para o desenvolvimento brasileiro nos 65 anos de existência do BNDES. Os desembolsos do banco, que durante anos apresentaram contínuo crescimento, passaram a cair e tiveram queda expressiva nos últimos anos.

A recessão fez com que o total de investimentos realizados na economia, formação bruta de capital fixo, caísse 26% em 2018 comparativamente ao nível de antes da crise, de 2014. É preciso viabilizar uma nova fase de crescimento econômico, para a qual o financiamento é fundamental.

O fato é que o papel representado pelo financiamento dos bancos públicos no Brasil é insubstituível no curto prazo. Dadas as condições desfavoráveis oferecidas pelo mercado privado, escassez de recursos, exigência de contrapartidas e elevadas taxas de juros praticadas, ele não representa uma alternativa viável para suprir as necessidades de financiamento de longo prazo para os setores produtivos e a infraestrutura. Daí ser imprescindível resgatar as condições do financiamento público nos moldes que funcionava a TJLP.

*Antonio Corrêa de Lacerda é professor-doutor e diretor da FEA-PUCSP, doutor em economia pelo IE/Unicamp, conselheiro e ex-presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon) e coautor, entre outros livros, de Economia brasileira (Saraiva, 6ed., 2018). Site: www.aclacerda.com.

** Artigo publicado no site Le Monde Diplomatique em 07 de dezembro de 2018.