Artigo – O fracasso do “austericídio” e o diagnóstico da crise brasileira
Findos 7 semestres do início do ajuste fiscal ortodoxo no Brasil, avolumam-se os indicadores de que a estratégia se revelou um contundente fracasso, inclusive no que tange à piora da situação fiscal. A elevação da taxa básica de juros a 14,25%, quando já era visível a recessão e a reversão dos impactos do “tarifaço” sobre a inflação, além de gerar uma violenta contração do crédito e explosão da inadimplência, elevou o serviço da Dívida Pública Federal a espantosos 7% do PIB (mais de R$ 400 bilhões), em 2016, quando, na média da OCDE, este indicador oscila entre 2,0 e 2,5% do PIB. Anos em que os lucros dos bancos e os ganhos dos rentistas bateram recordes no Brasil.
Os incentivos tributários e desonerações concedidos a vários segmentos empresariais, sem condicionalidades e contrapartidas, ou prazo de encerramento, escalaram a partir de 2011, chegando a 5% do PIB em 2015 (R$ 300 bilhões). Em paralelo, medidas draconianas na gestão fiscal, como o teto de gastos, contribuíram para deteriorar a qualidade e ampliar a regressividade do gasto público.
Uma análise da evolução das receitas e despesas federais revela que o maior problema está na trajetória recente das receitas. O “austericídio” se aprofunda à medida que comprime rubricas com elevado multiplicador e capilaridade, como o investimento público e gastos sociais (saúde, educação, ciência e tecnologia, entre outros), preservando rubricas “carimbadas”, como a rolagem da dívida, gastos previdenciários e privilégios corporativistas, com reduzido ou nulo impacto sobre a atividade econômica. Ou seja, aprofundando a anemia agônica vivida pelo consumo doméstico e repondo o desequilíbrio fiscal, devido à redução da arrecadação decorrente da contração da atividade econômica.
Desde as longínquas jornadas de junho de 2013, ficou escancarado o impasse civilizatório do Brasil: o embate entre dois grandes campos políticos, cuja narrativa principal está no ódio e na denúncia do adversário. Os dois grandes partidos que governaram o país nos últimos 25 anos erraram feio ao não realizar a autocrítica sobre as condutas patrimonialistas e corporativistas no exercício do Governo. Não apenas não enfrentaram a questão, como bloquearam a necessária renovação de seus quadros dirigentes, contribuindo para posicionar a corrupção como a questão central da agenda nacional. Desta forma, facilitando ao populismo de ocasião vender a panaceia de que basta ignorar qualquer “indicação política”, entregando a “generais esclarecidos” a maior parte dos ministérios e o comando da economia a um banqueiro privatista, que cessará a corrupção no país e, por meio da retomada da “confiança”, o investimento privado levará o país à bem aventurança do desenvolvimento. Tal miragem não resiste a uma análise mais cuidadosa dos fatos.
Em 1º lugar, porque dois impeachments em 25 anos atestam que é impossível governar o Brasil sem uma maioria parlamentar minimamente estável. Em 2º, porque a corrupção, um problema grave, mais do que a causa da crise brasileira, na verdade constitui-se em um de seus mais perversos sintomas. Que é, precisamente, a privatização do Estado, por interesses particularistas de várias ordens. Em 3º, porque ficou provado que não há condições políticas e financeiras de realizar as reformas previdenciária ou tributária, por exemplo, sem um ambiente de crescimento econômico.
A atual estagnação não tem paralelo no pós-Guerra no Brasil. Passados 4 anos do início da crise recessiva, não vemos reagir o investimento agregado (atualmente entre 15 e 16% do PIB), nem o emprego, nem a oferta (e demanda) de crédito. A utilização da capacidade instalada na indústria mantém-se cerca de 7 pontos percentuais abaixo do pico, entre 2013 e 2014. Em situações como esta, ensinava Keynes, o investimento público tem papel fundamental para reduzir a capacidade ociosa, multiplicar renda e induzir e coordenar os investimentos do setor privado.
Não podemos ignorar que o atraente pseudo-liberalismo ortodoxo e privatista funciona sob uma lógica perversa: a crise e a recessão são “purificadoras” e produzem excelentes momentos para alienar patrimônio público constituído durante décadas e basilar para o exercício da soberania nacional. Se, desconhecemos as recentes experiências de (re)organização e coordenação estatal estratégica, em países como China, Coreia, Alemanha e EUA, pelo menos façamos a pergunta: “o que tudo isto tem a ver com o problema fundamental de geração de empregos e de indução ao desenvolvimento”?
Felipe de Holanda – Presidente do IMESC e Conselheiro Federal do Conselho Federal de Economia.
Artigo publicado no jornal O Imparcial (MA) no dia 26 de agosto.